A organização de loterias entre os eleitores foi um dos métodos
"inovadores" utilizados para angariar votos. E Putin considera-se agora
legitimado para se recandidatar e se manter no poder até 2036. José
Milhazes, via Observador:
A forma e os métodos utilizados para o Kremlin conseguir os seus
objectivos, deixam claro que o actual regime de Vladimir Putin não
chegará ao fim através de eleições democráticas e condenam a Rússia a
novas turbulências no futuro.
Os resultados ficaram, até, um pouco além daquilo que os
organizadores da “votação nacional” esperavam: quase 80% dos eleitores
inscritos votaram a favor, com uma afluência às urnas de 65%. Para dar
um ar de credibilidade ao escrutínio, o “não” recebeu o apoio de 21,26%
dos votantes.
O dirigente político que afirmara, em 2005, que “não tenciono mudar a
Constituição em circunstância alguma”, não conseguiu passar no teste do
poder absoluto e considera-se agora “legitimado” para se recandidatar
ao cargo de presidente em 2024 e 2030. Putin sai desta “votação” com
poderes ainda mais reforçados, nomeadamente no que respeita à formação
do governo russo.
Para que estes resultados pudessem ser conseguidos, foi necessário
utilizar “métodos clássicos” e formas “inovadoras” de participação no
escrutínio.
Entre os métodos clássicos, é de salientar a forma como os poderes
regionais obrigaram os funcionários públicos a participar no escrutínio.
Foram numerosas as queixas de médicos, enfermeiros e muitos outros, que
foram obrigados a votar no seu local de trabalho ou a trazer uma prova
de voto consumado no local de residência.
Na “área militar”, o caso mais flagrante registou-se nas Forças
Armadas da Rússia, onde a afluência às urnas foi de 99,9% dos inscritos.
No “campo civil”, ele aconteceu na Chechénia, república do Cáucaso
russo dirigida pelo tirano Ramzan Kadyrov, onde 97,36% votaram no “sim”.
A organização de lotarias para os votantes foi também outra fórmula
de atracção utilizada. E, em numerosos casos, as urnas foram
transportadas até casa dos eleitores, parques, em bagageiras de
automóveis para “facilitar a vida ao eleitorado”.
No que respeita às inovações, é de salientar o facto de a votação se
ter prolongado por cinco dias. As autoridades justificaram esta novidade
com a pandemia da Covid-19, embora, num país que continua a registar
diariamente mais de seis mil contaminados, colocando-o no primeiro lugar
da Europa e num dos países do mundo mais afectados pela pandemia, fosse
mais lógico adiar a sua realização.
A votação, aliás, estava marcada para Abril, quando o surto pandémico
não tinha ainda tomado as dimensões actuais, e foi adiada para Julho,
mas os planos de Vladimir Putin não puderam esperar mais.
Os resultados do escrutínio foram de tal forma do agrado das
autoridades, que Ella Panfilova, a presidente da Comissão Eleitoral
Central da Rússia, já veio afirmar que esta experiência das urnas
abertas ao longo de cinco dias, é para continuar. Ficou por explicar
como foi possível garantir a inviolabilidade das urnas durante esses
dias, mas alguns dos “observadores internacionais”, ligados à
extrema-direita alemã e italiana, já vieram declarar que tudo correu
dentro dos conformes.
A criação de uma onda ultra-patriótica no país foi outra das formas
tradicionais de levar os russos às urnas. Foi essa a razão porque
Vladimir Putin transferiu a parada militar de 9 de Maio, dia em que se
comemora a vitória do Exército Vermelho sobre o nazismo alemão em 1945,
para o dia 24 de Junho, ou seja, para a véspera do início da votação. A
pandemia voltava a deixar de ser um obstáculo à manifestação do poder
militar russo.
Outra inovação foi a publicação de resultados de sondagens no
decorrer do acto eleitoral e o anúncio preliminar de resultados durante o
último dia da votação. No primeiro caso, a direcção do VTzIOM, empresa
de sondagens controlada pelo Kremlin, justificou a sua publicitação,
afirmando não saber que era proibido. No segundo caso, a explicação teve
como argumento tratar-se de uma “prova de transparência” do escrutínio.
Durante a campanha eleitoral, os adeptos do “não” foram, ainda,
praticamente marginalizados pelos órgãos de comunicação social ligados
ao Kremlin e o facto das oposições parlamentar e extra-parlamentar não
terem conseguido tomar uma posição única face à votação, facilitou a
vida aos organizadores do espectáculo. Parte da oposição apelou ao
boicote do escrutínio e parte incitou ao voto no “não”.
Arrisco-me a escrever uma ideia que, provavelmente, não agradará a
muitos. Será que Vladimir Putin poderia vencer esta votação sem recorrer
a velhas e novas formas de fraude eleitoral? Talvez conseguisse e uma
das razões principais prende-se com o medo das mudanças bruscas na
sociedade russa. São muitos, aqueles que ainda se recordam das
dificuldades económicas e sociais sentidas no final da era da União
Soviética e na década de 1990, não querendo arriscar o regresso de
situações análogas.
Se as autoridades russas não conseguirem controlar a pandemia de
Covid-19, no entanto, e se a situação económica e social continuar a
deteriorar-se, o regime de Vladimir Putin poderá ter de enfrentar ondas
de protesto sem precedentes. Foi esta, aliás, uma das razões que levou o
dirigente russo a realizar a votação em tempo de pandemia.
A política do Presidente Putin começa também a criar atritos dentro
das próprias elites russas, algumas delas descontentes com o aumento da
influência dos “siloviki” (políticos saídos dos serviços secretos
soviéticos/russos) nas estruturas de poder. Será preciso esperar para
ver se Putin conseguirá manter o poder até 2024 e ter condições para se
recandidatar.
P.S.: Estou curioso para saber qual é a posição do Partido
Comunista Português face aos resultados da “votação nacional”. Deverão
ter dificuldade em expressar regozijo, porque os comunistas russos
votaram contra as emendas à Constituição. Ou será mais lucrativo
continuar a lançar elogios a Putin?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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