Ameaça chega à entrada da casa do maior bilionário do mundo. Vilma Gryzinski, na edição impressa de Veja:
Do alto de seus inacreditáveis 160 bilhões de dólares, Jeff Bezos
achou que conseguiria se safar. O dono da Amazon — e do campeão de
antitrumpismo na grande imprensa, o Washington Post — pôs a bandeira do
Black Lives Matter no site da megaempresa, usou todos os clichês da
linguagem engajada e soltou o dinheiro. Foram 10 milhões de dólares para
diferentes organizações de defesa da minoria negra. Está bom? De jeito
nenhum. No último domingo, um grupo de jovens montou uma guilhotina de
papelão na porta de sua casa em Washington, uma das múltiplas mansões do
homem mais rico do mundo. “Quando não temos voz, é hora de pegar as
facas”, disse uma das duas branquíssimas jovens com o figurino Antifa
que se colocaram à frente do grupo. Reivindicação: extinguir a Amazon.
Quem começa propondo a abolição da polícia, como virou moda entre as
múltiplas manifestações desencadeadas pela morte de George Floyd, chega
rapidamente ao capitalismo. E aos capitalistas. Grandes empresas
americanas captaram o espírito do tempo e enfiaram a mão no bolso. A
inundação de dinheiro é de deixar Bezos no chinelo: 100 milhões de
dólares da Walmart, a maior rede de varejo do mundo; mais 100 milhões da
Apple. A Target foi mais modesta, apenas 10 milhões, como Bezos. Levou
uma invasão numa loja em Washington.
Nada se compara ao que fez o dono de uma grande rede de lanchonetes, a
Chick-fil-A (a pronúncia em inglês equivale a filé de frango, a estrela
do delicioso sanduíche da rede). Durante um programa de televisão, Dan
Cathy, com fortuna de 6,7 bilhões de dólares, ajoelhou-se e “engraxou”
os sapatos do rapper Lecrae, como ato de contrição pela discriminação
racial do passado. Engraxou entre aspas, porque o cantor estava de
tênis, como todos os outros da sua categoria. Em 2017, a empresa foi
ameaçada de boicote por contribuir para organizações evangélicas que são
contra o casamento de homossexuais. Em apoio à rede, formaram-se longas
filas nas portas das lanchonetes, geralmente de evangélicos
identificados com seus valores. O casamento gay não sofreu o menor
abalo, mas a empresa deu uma guinada em suas obras filantrópicas,
culminando com o momento em que Dan Cathy acabou de joelhos.
O ato tem um grande valor simbólico porque coincide com os protestos
em que diferentes personalidades se ajoelham “contra o racismo”. Isso
quando não fazem declarações públicas de pecados de antecessores
distantes, ligados à escravidão ou à segregação racial. Tudo lembra cada
vez mais os autos de fé, a penitência ritualística dos acusados pela
Inquisição espanhola, em geral judeus cuja conversão compulsória ao
cristianismo era contestada. E cada vez menos a revolta legítima e
necessária para combater a discriminação racial. Alguns espíritos
cínicos achariam também que batidas no peito e contribuições generosas
são notavelmente parecidas com pagamentos preventivos para evitar,
digamos, problemas. Mas Bezos já viu como é difícil escapar da
guilhotina. Segundo o delicioso pagode do Grupo Revelação: “Quando o
bicho pegar / Não vai dar nem pra correr / E não adiantará / Ajoelhou,
tem que rezar”.
Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694
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