A primeira instância já refez o trabalho ordenado pelo STF, mas a corte
suprema ignorou completamente a sua própria tarefa. Editorial da Gazeta do Povo:
Em 11 de maio, Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras e do Banco
do Brasil, foi condenado a seis anos e oito meses de prisão por
corrupção passiva em um processo da Operação Lava Jato. Ele já tinha
sido condenado no mesmíssimo processo pelo então juiz Sergio Moro, em
março de 2018, sob acusação de recebimento de R$ 3 milhões em propina da
Odebrecht, mas a nova condenação, desta vez pelas mãos do juiz Luiz
Antônio Bonat, nada tem de déjá vu: é resultado de uma história de idas e
vindas que vem contribuindo para o agravamento da crise de segurança
jurídica que grassa no país há alguns anos. No centro de todo o
problema, a hesitação injustificável dos ministros do Supremo Tribunal
Federal em estabelecer regras claras para o sistema de Justiça criminal.
Em agosto de 2019, a condenação de Bendine, que já tinha sido
confirmada na segunda instância, foi anulada pela Segunda Turma do STF,
que acatou a alegação da defesa segundo a qual o réu teria tido seu
direito à defesa prejudicado. Quando de sua primeira condenação, Aldemir
Bendine apresentou suas alegações finais no mesmo período que os
delatores que o haviam incriminado. Tudo de acordo com o Código de
Processo Penal, mas os ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Ricardo
Lewandowiski entenderam que corréus delatores devem ser considerados
como auxiliares na acusação – uma nova categoria de réus, diferenciação
inexistente no CPP. De maneira geral, o disposto no acórdão se resume na
fórmula: “a apresentação das alegações finais de corréus não
colaboradores deve se dar após a apresentação do documento por parte dos
colaboradores”.
O STF não parou por aí: em setembro de 2019, o plenário da corte
decidiu, por 6 votos a 4, anular outra sentença, a do ex-gerente da
Petrobras Márcio de Almeida Ferreira, condenado pelo então juiz Moro por
corrupção e lavagem de dinheiro. O caso acendeu todas as luzes amarelas
na opinião pública, já que Moro efetivamente deu prazo adicional à
defesa quando percebeu que as alegações finais de outros réus continham
informações novas. Ali, destravou-se mais um selo da caixa de Pandora.
A tese que o delatado deva entregar a alegação final depois do
delator não parece ter algo de injusta em si mesma. Antes, pelo
contrário, é uma garantia importante para a defesa, que não deve ser
cerceada, como acontece no caso em que o delator eventualmente apresente
fatos novos que tenham relevância para uma eventual condenação. Nesse
caso, a anulação do processo equivaleria a garantir o ao réu o direito
de defesa. Instituir regras mais claras no processo penal para evitar
lacunas e injustiças é desejável e tarefa nobre, principalmente em face
da aplicação de leis que anteriormente não faziam parte do nosso
ordenamento jurídico, como é o caso da delação premiada. Porém, é
preciso ter em mente que nunca foi prerrogativa das cortes alterar lei
processual penal. E aqui já temos invasão de competências.
Afinal, uma coisa é determinar uma regra a ser seguida deste momento
em diante; outra, bem diferente, é mudar o entendimento de processos já
julgados quando não houve apresentação de fatos novos nas alegações
finais ou quando o juiz concedeu prazo adicional para o corréu delatado.
Considerando que o artigo 403 do CPP não faz qualquer distinção entre
os acusados para apresentar suas alegações finais, esse tipo de decisão
corresponde a um ativismo judicial grosseiro que, infelizmente, vem
fazendo história nas decisões do STF.
Após anular a condenação de Ferreira, o Supremo decidiu que deveria
estabelecer uma tese para aplicar aos novos casos que chegassem à corte.
O presidente do STF, Dias Toffoli, disse ter duas propostas para
colocar na mesa: na primeira, só seriam passíveis de anulação os
julgamentos em que a defesa de um delatado pediu para falar por último;
na segunda, seria preciso que ficasse comprovado o prejuízo concreto ao
réu para se anular o julgamento – a única solução aceitável, pois a lei
sustenta que não há nulidade sem prejuízo, isto é, pas de nullité sans
grief.
A indecisão da corte é problemática por duas razões fundamentais.
Primeiro, porque acatar qualquer uma das propostas implicaria admitir o
erro nos dois casos já julgados. Nem Bendine, nem Ferreira puderam
provar quaisquer prejuízos sofridos nas alegações finais. Segundo,
porque, se ambas as teses de Toffoli forem rejeitadas em benefício de
uma outra segundo a qual todo julgamento no qual o magistrado não
concedeu tempo adicional para as alegações finais será anulado, ainda
que o procedimento estivesse de acordo com o CPP, viveremos uma
verdadeira Primavera do Crime, com a soltura não só de corruptos presos
pela Lava Jato, mas também de narcotraficantes e milicianos. Entre as
consequências previsíveis, para além da celebração da impunidade, temos
ameaças reais à integridade física de delatores e mesmo de operadores do
sistema de Justiça criminal.
Já se passaram oito meses desde que a primeira sentença de Bendine
foi anulada. A primeira instância já refez o trabalho ordenado pelo STF,
mas a corte suprema ignorou completamente a sua própria tarefa, a de
definir uma modulação para analisar situações semelhantes. A hesitação
do Supremo em enfrentar as consequências de suas próprias decisões tem
mergulhado o país num cenário de insegurança jurídica preocupante. A
cena quase kafkiana de um processo no qual um réu é condenado em duas
instâncias, para ter seu processo anulado na última, voltando para a
primeira só para ser condenado novamente, é o retrato de um sistema de
Justiça criminal submetido à anomia. O STF deveria ser a salvaguarda
contra a desordem, não fonte de mais instabilidade. Até quando as cortes
vão colocar sua reputação em jogo virando a mesa a cada nova rodada?
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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