Trump quer trazer de volta a produção de medicamentos há muito
terceirizada, França se preocupa com os equipamentos médicos - e a
vacina também. Vilma Gryzinski:
Os Estados Unidos querem produzir seus próprios remédios, a França vai fabricar suas próprias máscaras e até a Índia
quer diminuir a dependência dos insumos farmacêuticos ativos, que
importa para a produção que a colocou na categoria de campeã mundial de
genéricos.
Não é preciso dizer qual os pontos em comum entre países tão diferentes.
Primeiro, quebraram a cara quando explodiu a epidemia do novo coronavírus e se viram de mãos vazias, tendo que implorar à China,
mesmo pagando muito caro, pelo fornecimento de equipamentos vitais, a
começar pelas máscaras cirúrgicas cuja falta matou cidadãos comuns,
internos e funcionários de asilos para idosos e trabalhadores dos
sistemas de saúde.
Segundo, descobriram que dependem não só de equipamentos de proteção e aparelhagem hospitalar, mas também de remédios.
Nos bons tempos da globalização, coisa de uns quatro meses atrás, os
americanos – ou a esmagadora maioria deles – iam dormir tranquilos,
sabendo ou não dos seguintes dados: farmacêuticas chinesas fornecem aos
Estados Unidos 90% de remédios como antibióticos, vitamina C, ibuprofeno
e hidrocortisona, 70% do acetaminofeno e até 45% do heparin.
Produzir mais e mais barato, mesmo descontando-se o custo adicional
do transporte, foi a lógica que acabou entregando à China o controle do
fornecimento mundial de remédios.
Como alterar isso depois do choque do coronavírus?
A produção nacional dirigida para setores estratégicos voltou a
rondar o vocabulário como se nunca tivesse ido embora depois de
descobrir que não tinha mais lugar num mundo onde tudo, sempre, poderia
ser fabricado, estocado e fornecido por um preço muito mais barato no
exterior.
O barato, como se diz no interior, saiu caro na hora da emergência.
Depois de passar pelo aperto de não ter máscaras, kits de teste,
respiradores e até termômetros, o presidente Emmanuel Macron,
considerado pelos inimigos à esquerda como entreguista terminal, e
globallsta-mor pela direita, quer aumentar a fabricação de máscaras na
França.
Foi um gesto mais para a plateia que fez quando a crise estourou. Mas
o significado não escapou, o velho nacionalismo e seu companheiro de
sempre, o protecionismo, ao qual ele dedica tanto desprezo, estão
doidinhos para voltar.
É só o primeiro passo de “um novo modelo que está para ser
inventado”, segundo disse ao New York Times um ex-diretor da Secretaria
Geral para a Defesa e Segurança nacional, Louis Gautier.
Macron também deu ataque quando soube que a Sanofi, grande
farmacêutica francesa, estava comprometida a produzir para o mercado
americano uma vacina ainda não existente, mas já em discussão.
A Sanofi está numa operação conjunta com a Glaxo com dinheiro do
governo americano para buscar a vacina, na França. Seu diretor local foi
chamado para uma conversa com o primeiro-ministro, Édouard Philippe.
Foi tudo dado como um mal entendido e o CEO da farmacêutica, Paul
Hudson, teve o juízo de voltar atrás, depois de dizer que os Estados
Unidos teriam a prioridade da vacina (que, repetindo, ainda não existe)
Brigar com a Sanofi é uma coisa, com a China é outra bem diferente.
Mesmo agora, depois do choque inicial, ninguém tem material médico em quantidade suficiente para se sentir independente.
Pelo menos para brigar, os Estados Unidos têm o sujeito certo, Peter
Navarro, o assessor para assuntos comerciais que nunca ouviu falar em
discurso diplomático.
“A China conseguiu dominar todos os aspectos da cadeia de
fornecimento usando as mesmas práticas comerciais viciadas que usou para
dominar os outros setores: exploração da mão-de-obra barata,
regulamentações ambientais frouxas e maciços subsídios governamentais”,
resumiu ele.
E o que aconteceria se o estado de guerra fria do momento ficasse um pouco mais quente?
“Se a China fechar a porta para a exportação dos componentes básicos
para nossos remédios, as prateleiras das farmácias ficariam vazias em
questão de meses e o sistema de saúde deixaria de funcionar”, resumiu
para o Times a especialista em risco Rosemary Gibson.
Para deixar as coisas mais claras, um artigo na agência oficial
XinHua notou nada diplomaticamente que os Estados Unidos acusam a China
de espalhar o novo vírus, mas “chafurdariam no inferno” se o país
suspendesse a exportação de medicamentos.
Pode ser mais claro?
A Índia, que depende em 70% dos insumos chineses para a fabricação de
remédios, sentiu os efeitos da crise, quando começou a epidemia na
região de Hubei e as atividades foram paralisadas.
Agora, já tem planos de diminuir essa dependência, tanto para efeitos
internos quanto para manter a liderança mundial que a coloca como
fornecedora de fim quinto dos genéricos consumidos no mundo.
Antigos laboratórios e outras instalações já estão sendo reativados na nossa onda de nacionalismo.
Como Trump, que não tem superpoderes nem sequer maioria na Câmara,
começaria, segundo o mesmo plano de Macron, a trazer de volta a produção
de remédios de volta para os Estados Unidos é um assunto monumental –
mas geralmente envolve algum incentivo governamental.
Mas é o tipo de assunto de que gosta.
“Não é só a China, deem uma olhada na Irlanda. Eles fariam nossos
remédios. Todo mundo fabrica nossos remédios, menos nós. Vamos trazer de
volta todas estas redes de suprimentos”.
Paralelamente, e com muito mais urgência, existe a disputa pela vacina contra o novo vírus.
Trump já anunciou quem serão os diretores da Operação Warp Speed, a nova Operação Manhatan.
Um é Moncef Saloui, nascido no Marrocos, formado em microbiologia na
Bélgica e com carreira na Glaxo, onde dirigia a divisão de vacinas.
O outro diretor é um general. Gustave Perna – uma comprovação de que
tão importante quanto desenvolver uma vacina é a logística alucinante da
produção em massa e da administração. Trezentos milhões de frascos e
outros trezentos de seringas descartáveis, tudo mantido em temperatura
refrigerada? Falem com o general.
O objetivo da Warp Speed é pular etapas no longo processo de se chegar a uma vacina e distribuí-la.
Poucos países avançados têm condições de fazer isso, inclusive porque
muitos europeus proibiam os testes com primatas. O que parecia um gesto
nobre, de proteção aos animais, virou uma limitação nessa hora de
extremo perigo. Pesquisadores europeus às vezes têm que mandar seu
trabalho para colega de países onde isso continua a ser possível, como a
Inglaterra.
Essa, no momento, está concentrada na “vacina de Oxford”, a mais
avançada das três que estão no páreo (a americana da Moderna, entre
outras na disputa; e a chinesa, da Sinovac).
A de Oxford vai começar a ser testada em 501 pessoas, de um grupo de
controle de 1.112. O nome dela parece código seguro: ChAdOx1 nCoV-19.
A equipe de Oxford tem um acordo com a AstraZeneca, um dos grandes
laboratórios britânicos, com participação suíça. A farmacêutica se
propõe a ter 30 milhões de doses da vacina até setembro.
Os Estados Unidos já fizeram um acordo para ter acesso privilegiado, o
que com toda certeza provocaria mais tensões nessa guerra química que
envolve desde a aspirina mais humilde até a sonhada vacina que nos
tirará do pesadelo.
É uma guerra com objetivos nobres, mas não sem disputas, concorrências e ataques de nacionalismo.
Envolve centenas de milhões de vidas, provavelmente outro tanto de
bilhões de dólares, prestígio, reconhecimento e um pequeno detalhe: já
pensaram se cada pessoa que faz uma compra na farmácia virasse a
embalagem para ver de onde vem seu remédio?
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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