Será que o Ocidente tem a coragem de enveredar por este caminho que
introduziria um enorme fator de mudança no mundo em que vivemos? Manuel
Almeida Ribeiro para o Observador:
De acordo com notícias recentes, várias entidades, principalmente nos
Estados Unidos, nomeadamente o Estado do Missouri, têm anunciado a
intenção de processar a República Popular da China pelos abissais
prejuízos em vida humanas e perdas materiais causados pelo Covid19.
Acontece que, sendo a China um Estado soberano, goza de imunidade
internacional e, portanto, não pode ser demandada em tribunais de
Estados estrangeiros. Sendo assim, o que pode ser feito?
A responsabilidade internacional de um Estado pode resultar da
violação de uma obrigação internacional, o que constitui um ato ilícito,
devendo o Estado ressarcir todos os danos causados pela prática desse
ato ilícito. Pode ainda resultar da responsabilidade pelo risco, por
desenvolver ou autorizar que seja desenvolvida no seu território uma
atividade perigosa, se dessa atividade resultar um dano
transfronteiriço. Este último tipo de responsabilidade foi desenhado
para o ressarcimento de danos ambientais. Para questões relacionadas com
a disseminação de doenças contagiosas, não existe, até agora, um quadro
específico em direito internacional.
Sendo assim, poder-se-ia, à primeira vista, concluir que não
existiria base jurídica para a responsabilização da China, mas acontece
que, como referido no artigo de Edgar Caetano publicado no Observador em 20 de abril,
a China terá violado as obrigações internacionais de notificação e
informação contínua, resultantes da sua vinculação voluntária às
International Health Regulations de 2005 da Organização Mundial da
Saúde.
A violação de uma obrigação internacional constitui sempre o Estado
que nela incorre em responsabilidade, mas sua concretização, ou seja, a
obtenção do ressarcimento é extremamente complexa. Uma das vias seria a
instauração de um processo no Tribunal Internacional de Justiça mas,
para tanto, seria necessário que a China tivesse depositado no TIJ uma
declaração de aceitação da jurisdição, o que não é o caso, ou que
aceitasse a jurisdição do Tribunal para este caso específico, o que
também não é plausível.
A falta de jurisdição não extingue, contudo, a responsabilidade.
Qualquer Estado ou Estados que se proponham efetivar a responsabilidade
deverão notificar a China dessa intenção, indicando a forma da reparação
a que julgam ser adequada. Seria útil que tais notificações fossem
precedidas de um inquérito internacional que apurasse se, de facto,
houve da parte da China a omissão de informação e a negação ou ocultação
de factos que causaram a eclosão ou o agravamento da pandemia e a terão
feito incorrer em responsabilidade.
E caso a China não aceitasse a responsabilidade que lhe fosse
imputada, não havendo tribunal que o possa decidir, que podem os Estados
reclamantes fazer? Em direito internacional, quendo não há nenhum meio
jurisdicional disponível, o que é mais a regra que a exceção, resta o
recurso à autotutela, ou seja, a tomada de medidas, designadamente sob a
forma de sanções, que possam induzir o Estado faltoso a alterar a sua
conduta ou a obter o ressarcimento por essa via.
Tendo a China investimentos estatais em todo o mundo poderá ser muito
vulnerável à aplicação de sanções que consistam, por exemplo, no
sequestro dos seus interesses noutros Estados. Poderiam ainda ser
introduzidas restrições a viagens de e para a China, com a invocação
adicional de razões sanitárias, visto esta ser a terceira epidemia que
teve origem na China neste século.
Será que o Ocidente tem a coragem de enveredar por este caminho que
introduziria um enorme factor de mudança no mundo em que vivemos?
Presidente da Direção da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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