O "documentário" de Petra Costa, que está sendo exibido pela Netflix,
recebe mais uma crítica impiedosa, desta vez assinada por Igor Guedes.
Diferentemente do que tenta impingir o filme, "o processo democrático
continua intacto", rebate Guedes. "O orgulho da esquerda é que está
trincado":
O documentário Democracia em vertigem, de Petra Costa, cineasta
mineira de 35 anos, estreou em 19 de junho, buscando construir uma
narrativa acerca dos últimos acontecimentos políticos do Brasil. Neta
dos fundadores de uma das maiores construtoras do país – a Andrade
Gutierrez, envolvida nos processos de corrupção que culminaram no
impeachment de Dilma Rousseff – e filha de dois ativistas de esquerda
dos anos 70, a diretora narra os fatos a partir da perspectiva de uma
militante desiludida pela derrota de seus ícones políticos.
O documentário utilizou-se fartamente de recursos audiovisuais para
endossar sua narrativa e conduzir o telespectador por uma suposta
decadência do processo democrático brasileiro. Nas entrevistas de rua, o
foco das filmagens estava sempre nas figuras mais caricatas, tomadas
sob uma perspectiva claramente maniqueísta.
De um lado, saltam aos olhos o homem branco, de meia idade, vestindo a
camisa da seleção brasileira, pedindo o fim da democracia, clamando
pela volta dos militares e destilando preconceitos. Desaparecem os
cartazes contra a corrupção, daqueles que pediram o equilíbrio das
contas fiscais, dos que questionaram o financiamento dos portos e obras
faraônicas em países governados por ditaduras africanas e
latino-americanas. Desaparecem os bilhões devolvidos aos cofres públicos
pela Lava Jato e o ineditismo que contraria o cerne do discurso da
esquerda: não eram apenas pobres e pretos sendo presos pela polícia;
finalmente víamos empresários e políticos pagando por seus crimes.
Por outro lado, nas manifestações pró-PT, emergem as lágrimas e a
emoção genuína. O foco são os manifestantes que enxergam em Lula um
redentor, uma figura paterna, amável e imaculada de bondade e ternura.
Há uma, em particular, de dois pipoqueiros fugindo do gás lacrimogêneo: o
ranger da roda do carrinho de pipoca, a expressão simples e sofrida são
comoventes e atendem ao interesse da construção narrativa.
A imagem que emerge é do negro, pobre, desiludido com o jogo sujo da
estrutura de poder que afastou injustamente uma presidente honesta e
prendeu um homem de bem. Desaparecem as vultosas somas de dinheiro
desviadas pelo PT e aliados. O "golpe" parece ter sido movido por uma
elite branca amargurada pela ascensão do mais pobre.
Estranhamente, o maior atentado contra o processo democrático de
2018, a tentativa de assassinato de Jair Bolsonaro em Juiz de Fora,
arquitetado por um militante de esquerda na véspera das eleições, não
foi nem sequer mencionado.
Ao fim, a Esquadrilha da Fumaça corta os céus da Esplanada dos
Ministérios enquanto Michel Temer passa a faixa presidencial para
Bolsonaro, sob uma trilha sonora carregadamente sombria e melancólica.
Caso fosse filmada em preto e branco, lembraria a ascensão do partido
nazista enquanto a Luftwaffe sobrevoa os céus de Berlim. Em contraste
com a imagem de pessoas humildes em lágrimas e pipoqueiros fugindo de
gás lacrimogêneo, a esquadrilha parece prestes a bombardear as
periferias do país com gás Zyklon B, atendendo aos anseios do "governo
fascista recém-eleito e da elite branca e preconceituosa que o conduziu
ao poder".
O fato, entretanto, é que assistimos, nas três últimas décadas, a
processos eleitorais regulares, legítimos, ininterruptos e que ocorreram
sob a supervisão de instituições democráticas sólidas, fiscalizadas por
uma imprensa livre e sob o olhar atento de uma população profundamente
dividida. Foi, aliás, a solidez desse sistema que permitiu que
presidentes ideologicamente opostos tomassem posse e se sucedessem no
Palácio do Planalto sem rupturas do tecido social.
Assim, o título grandiloquente Democracia em vertigem confunde
democracia com paixão partidária. Petra Costa interpreta a quebra do
discurso hegemônico da esquerda como um risco para a democracia.
O processo democrático segue intacto; o orgulho da esquerda é que está trincado. (Gazeta do Povo).
Igor Guedes é bacharel (Ufop) e mestre em História (Ufjf).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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