O que esta nova esquerda busca não se reduz ao desenvolvimento de um
Estado tutelar. É algo que visa a perfeita eliminação da sociedade como
realidade distinta do Estado. Basta ouvir Catarina Martins, escreve o
professor Paulo Tunhas no Observador (observo que essa Catarina lembra Gleisi, Maria do Rosário e que tais: esquerdistas se parecem em qualquer lugar do mundo):
Cada época tem liberdades que lhe são próprias, muitas vezes
incompatíveis com as liberdades de outras épocas. Tocqueville mostrou-o
no que diz respeito ao Antigo Regime e à sociedade pos-revolucionária e,
muito mais importante, a experiência da vida mostra-o a cada um de nós:
pouco tempo basta para que certas liberdades permitidas pela sociedade
desapareçam e outras novas surjam em sua substituição. E, naturalmente,
quem tiver crescido com as liberdades antigas sempre sentirá a falta
delas, cuja memória as novas não apagarão. Resta aceitar
democraticamente o curso dos tempos, procurando preservar pelo menos a
memória dessas antigas liberdades contra a força obliteradora do
presente.
Dito isto, a par da tendência uniformizadora da democracia, com o
fatal aumento da presença de um Estado tutelar, paternal e vigilante e a
concomitante infantilização dos indivíduos, há algo que é quase uma
perversão dessa mesma tendência e que age, cada vez com menos
restrições, no sentido de contrariar as liberdades em geral,
ambicionando não deixar praticamente reduto algum em que elas
sobrevivam, nem sequer sob a forma da memória, tal como esta se exprime
em atitudes, gestos ou palavras. E essa perversão é, nas nossas
sociedades, representada por uma certa esquerda, que conjunturalmente
parece ter tomado conta do espaço praticamente todo da esquerda
tradicional, onde a memória e a prática da liberdade se encontravam
ainda vivas e activas, ao ponto de quem, no interior dos sobreviventes
dessa antiga tradição, a procurar ainda preservar, ser condenado, por um
processo ao outro, ao silêncio e à irrelevância.
O que esta nova esquerda, que nos seus antecedentes é velhíssima,
busca não se reduz ao desenvolvimento de um Estado tutelar. Isso, não
apenas a velha esquerda como a maioria da direita o procura também, até
porque é algo que acompanha a tendência geral à democratização
uniformizadora da sociedade. É algo que visa a perfeita eliminação da
sociedade como realidade distinta do Estado, a subjugação dos indivíduos
e das suas acções ao controle estrito pelo Estado, sem margem de
manobra possível. Ouçam Catarina Martins na televisão, ou qualquer
representante da “ala esquerda” do PS, e é exactamente isso que é dito,
sem papas na língua.
Pode-se dizer, sem receio de particular injustiça para com Marx, que
uma parte desta atitude tem origem no marxismo, mas a verdade é que ela
vem de mais longe. À sua maneira, Benjamin Constant já a havia
diagnosticado num texto célebre de 1819, Sobre a liberdade dos Antigos
comparada com a dos Modernos. Constant identificava os adversários da
liberdade individual como os herdeiros da tradição rousseauiana, como
Mably, que “detestava a liberdade individual como se detesta um inimigo
pessoal”. É esse ódio que é transparente nos discursos da sorridente
Catarina e dos seus amigos, não só do Bloco como também da esquerda nova
do PS. E não falo sequer do PC, para o qual a liberdade individual é,
desde tempos imemoriais, objecto de uma condenação que se ambiciona
“científica” e fundada numa filosofia da história de que não se desvia,
aconteça o que acontecer, um só milímetro.
Tudo isto tem óbvias ressonâncias teológicas. Trata-se da velha luta
entre a luz e as trevas que o maniqueísmo colocava no princípio
explicativo de tudo. Coloquem o indivíduo em lugar da matéria e o Estado
a fazer a vez do espírito e têm lá tudo. Tudo o que mexa fora do
Estado, tudo o que possa ser visto como criação de indivíduos autónomos e
agentes livres, é visto como o resultado de um princípio diabólico que é
preciso matar na raiz. Do ensino à economia e à saúde, passando por
quase tudo o resto, esta teologia política tomou conta das cabeças quase
todas da esquerda e tornou-se o dogma maior do presente governo.
Dir-me-ão que, por má-fé ou ignorância, caricaturo, e que Bloco, que é
o mais vocal representante destas doutrinas, milita, e sempre militou,
por vários aspectos da liberdade individual, como por exemplo em
matérias de sexualidade. Na aparência, talvez seja assim, e se fosse
verdadeiramente assim o folclore que costumeiramente exibe seria
facilmente perdoável. Mas convido-vos a atentarem na natureza dos
indivíduos tal como o Bloco os concebe. Não se trata de agentes dotados
de um princípio interno de acção e de criação em qualquer dos planos da
vida social que possamos conceber, desde os empresários que procuram
criar riqueza aos artistas. São antes apenas seres definidos por
propriedades genéricas misteriosamente encarnadas em sujeitos
curiosamente insubstanciais e sem princípios de acção próprio:
indivíduos não individuais, por assim dizer. Peguem em qualquer uma das
“causas” freneticamente agitadas pelo Bloco desde há anos e encontram
sempre, qualquer que ela seja, como seu objecto único, esses tais
indivíduos não individuais.
É aos indivíduos não individuais, constituídos por uma amálgama de
propriedades abstractas, que a política da nova esquerda – a do Bloco e a
do governo – se dirige. E ela apresenta o mais avassalador conformismo,
apesar das aparências enganadoras. O conformismo manifesta-se, entre
outras coisas, na obsessão de legislar em todos os domínios possíveis,
de modo a que a lei e os comportamentos humanos coincidam ponto por
ponto, ao milímetro. Esta ambição, que equivale a uma excisão da
imaginação nos seres humanos, destrói a liberdade individual, que passa
certamente pela possibilidade de agir criativanente, longe da obrigação
de coincidência estrita com as regras de comportamento encapsuladas nos
mínimos mandamentos do Estado. Sou suficientemente velho para me lembrar
dos tempos em que a esquerda o sabia. Hoje, ignora-o por inteiro.
O que está por detrás disto tudo é um grande medo da liberdade, da
confrontação com a contingência, o risco, a incerteza e a deliberação.
Dito de outra maneira: o medo – um medo, é claro, compreensível – do
isolamento e da solidão, algo que faz desejar uma sociedade fechada, na
acepção que Popper, que convém recordar por estes dias, deu à expressão.
Não quero de modo algum absolutizar entidades abstractas, mas, nos
tempos que correm, é a direita que melhor defende a liberdade, pelo
menos uma direita que saiba interpretar convenientemente a complexa e
contraditória tradição da liberdade que é a nossa. E é uma missão
urgente, porque não estamos apenas em presença da metamorfose das
liberdades que referi no início deste artigo. É mesmo de um confronto
com os inimigos da liberdade que se trata.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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