A descoberta de 53 espécies que povoaram os oceanos há milhões de anos
ajuda a jogar luz sobre o maior dos mistérios: o surgimento dos seres
vivos. Reportagem de Sabrina Brito, publicada na edição impressa de Veja:
Um artigo publicado na mais recente edição da revista americana
Science traz uma notícia extraordinária. Um grupo de pesquisadores
chineses encontrou fósseis preservados em rochas ao longo das margens do
Rio Danshui, no norte de Taiwan. Ao todo, eles descobriram 4 000 restos
de animais de 100 espécies petrificadas pelo tempo. Destas, 53 nunca
haviam sido catalogadas, entre elas um tipo de molusco e muitos
artrópodes, ramo de classificação ao qual pertencem os insetos e os
crustáceos. Entre as maravilhas encontradas, estão alguns espécimes de
cordados, representados por seres de espinha dorsal, nos quais se
encaixam os seres humanos. Considerando-se o que se descobriu até hoje,
eles eram raríssimos durante o período Cambriano, compreendido entre 542
milhões e 488 milhões de anos atrás. O tesouro que agora vem à tona é
uma valiosa ajuda para iluminar um mistério que nos perturba desde
sempre: como e por que os seres vivos se multiplicaram tanto no
Cambriano?
No período Cambriano — que, em latim, quer dizer “Câmbria”, antigo
nome do País de Gales, numa referência ao local onde foram encontrados,
no século XIX, os primeiros fósseis que deram pistas sobre aquela fase
tão longínqua —, a temperatura média era 7 graus acima da atual, havia
quatro continentes estéreis e a superfície do globo era quase
inteiramente coberta por água. Houve, naquele período, uma eclosão
espetacular de vida, a chamada Explosão Cambriana. Aconteceu nos oceanos
algo misterioso que levou a uma imensa diversificação das plantas e dos
seres aquáticos e ao aparecimento de mais de trinta ramos de animais,
como os artrópodes. Toda a vida que existe, inclusive a humana, tem raiz
naquela explosão. Contudo, quase nada se descobriu sobre o Cambriano
além desses poucos dados.
Para montarem o quebra-cabeça daquele período em que os enigmas ainda
superam as respostas, os cientistas se apoiam em fósseis preservados em
rochas. O precioso sítio arqueológico das descobertas de agora,
denominado Qingjiang, demandou escavações de até 10 metros de
profundidade para que fosse possível recuperar os vestígios orgânicos
que podem ajudar a contar a história daquela fase. Disse a VEJA o
geólogo chinês Xingliang Zhang, líder da expedição e professor da
Northwest University, nos Estados Unidos: “A região nos fornece indícios
inéditos que certamente nos levarão a repensar como foi a Terra.
Acredito que são os fósseis mais antigos já encontrados do Cambriano”.
Estima-se que os itens revelados tenham mais de 500 milhões de anos.
“A Explosão Cambriana é um evento de enorme importância para a vida
terrestre. Ao que tudo indica, foi quando apareceram os organismos que
serviram de base para quaisquer animais que hoje habitam o planeta”,
explica a paleontóloga canadense Allison Daley, da Universidade de
Lausanne, na Suíça, autora de outro artigo da Science, que analisa a
descoberta. “Quanto melhor compreendermos o que ocorreu para a
disseminação de animais e plantas daqueles tempos, melhor entenderemos a
biodiversidade da Terra e o processo evolutivo que chegou a ela”,
conclui a paleontóloga, em entrevista a VEJA.
Entre as hipóteses científicas para explicar o que deflagrou a
Explosão Cambriana está a possibilidade de uma transformação crucial na
composição química dos mares. Se os motivos que possibilitaram o
fenômeno forem elucidados, acredita-se que a humanidade estará mais
perto de responder à mais intrigante das perguntas: “Afinal, o que
originou a vida?”. Os fósseis do Cambriano ainda vão fornecer muitas
respostas, mas já são prova cada vez mais irrefutável e contundente de
que os antepassados de todos os animais, inclusive do Homo sapiens,
viviam nesse período tão distante, que desafia a própria imaginação
humana.
Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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