Em entrevista exclusiva ao Estado da Arte, o cientista político alemão Hans Maier fala sobre totalitarismo e religião e critica o conceito de ideologia: "a ideologia
cria a “segunda realidade” de que Eric Voegelin fala. A ideologia nada
mais é que uma crença fanática, uma imitação perversa da ciência. Com a
queda dos totalitarismos (nacional-socialismo, comunismo) também sua
ideologia caiu, porque não era uma realidade “real”, mas sim uma
“segunda” realidade":
O eminente Prof. Dr. Hans Maier, nascido em 18 de junho de 1931 em
Freiburg im Breisgau, Alemanha, é professor Emérito de Ciência Política e
Teoria Religiosa e Cultural na Universidade de Munique. Entre 1970-1986
foi Ministro da Educação e Cultura da Baviera, e entre 1976-1988,
Presidente do Comitê Central dos Católicos Alemães. Possui inúmeras
publicações sobre a história da igreja, o Estado administrativo moderno e
a teoria do totalitarismo e das religiões políticas. Recebeu vários
prêmios e medalhas, dentre eles a Medalha Constitucional da Baviera, em
ouro (1999), o Prêmio Cultura da Baviera (2005) e o Prêmio Karl Jaspers
(2014).
Fundamental para a compreensão dos movimentos totalitários,
Totalitarianism and Political Religions: concepts for the comparison of
dictatorships é uma de suas obras fundamentais. Publicadas pela
Routledge em 2004 e 2012, Maier organizou e editou a coleção de três
volumes traduzidos do alemão para o inglês. As obras trazem a reflexão
de vários autores sobre o tema das religiões políticas em várias
perspectivas analíticas. A preocupação com esse trabalho foi não apenas
distinguir o comunismo, fascismo, nacional-socialismo, maoísmo, mas
precisamente encontrar as características comuns a eles e a reflexão
sobre a pertinência dos conceitos de totalitarismo e religião política
para o século XXI.
Dr. Maier, prestes a completar 88 anos, gentilmente nos concedeu uma
breve entrevista por e-mail, brindando o leitor de O Estado da Arte com
considerações fundamentais para a compreensão do mundo contemporâneo,
relevantes inclusive para o momento político brasileiro:
Rodrigo Coppe e Adelaide Pimenta: As relações entre política e
religião são imemoráveis. No Ocidente, a diferenciação das esferas
políticas e religiosas foi alcançada pelo longo processo de
secularização. Como o senhor compreende esse processo?
HM: Na minha opinião, há uma “secularidade cristã”. O cristianismo,
longe de ser uma contrapartida da secularidade, é na sua origem um mundo
“divinizador”, um elemento secularizante. (“Dê a César o que é de César
e a Deus o que é de Deus”). Historicamente, ele dissolve a unidade
autoevidente da religião e da política na antiguidade, supera os antigos
cultos estatais, libera a política como um campo do homem. Através do
seu conceito transcendente de Deus, o Cristianismo quebra o encanto da
imanência político-religiosa. Além da polis, a civitas – a “igreja” da
religião antiga – a comunidade cristã emerge como o povo dos redimidos;
ela nega o culto dos deuses ao imperador e “exibe” o poder dos
governantes terrenos em nome de Deus. A política se torna um “trabalho
da humanidade” em um sentido radical na era cristã.
RC e AP: Poderíamos dizer que a ascensão das “religiões
seculares”, para usar o conceito de Raymond Aron, é uma das
consequências da secularização? Por quê?
HM: O mundo secular co-criado pelo cristianismo não é um mundo
secularista. Da mesma maneira que o surgimento das modernas “religiões
seculares” não é uma consequência do cristianismo. As principais
diferenças: de acordo com a compreensão cristã, este mundo é criado,
provisoriamente, final – não é o último, mas um penúltimo (enquanto na
antiguidade o cosmos era autossuficiente). Então, “mundo” e “igreja”
estão em um “relacionamento” dialético entre si – especialmente do ponto
de vista de sua criatividade – eles interagem, competem um com o outro,
como pode ser visto, entre outras coisas, na história dos direitos
humanos, mas também do estado de bem-estar social.
RC e AP: Pode-se dizer que os totalitarismos do século XX são uma
herança da modernidade? Formou-se algum tipo de “padrão” de
totalitarismo para os dias atuais?
HM: Para mim, o totalitarismo não é uma herança da era moderna – no
máximo, a consequência de uma modernidade reincidente e perversa, que
recaiu na antiga desunião entre religião e política, e nega o divórcio
cristão dos poderes. O termo “totalitarismo” foi desenvolvido no século
XX (antes não faz sentido). Ele ainda está de pé hoje.
RC e AP: Podemos observar, nas discussões políticas, que grupos em
choque acusam uns aos outros de “totalitários”, ou mesmo “fascistas”.
Parece que distorcem os fatos e denominam o outro de “totalitário”
utilizando-se dos mesmos argumentos. Esse é o tipo de distorção da
realidade pensado por Eric Voegelin? O senhor pode, por favor, explicar
mais sobre a “segunda realidade” como descrita por Voegelin?
HM: A ciência, no sentido estrito, só é possível se houver
concordância entre os grupos opostos sobre os princípios do pensamento.
Se não existir, nenhuma discussão é possível. O escolasticismo, por
exemplo, dizia: Contra principia negantem non est disputandum. [não se
deve discutir com alguém que nega os princípios]. Isto também se aplica
aos totalitarismos modernos; nenhuma conversa é possível entre eles.
Sistemas totalitários excluem ao oponente o pensar. Eles se absolutizam
de uma maneira fetichista.
A ideologia cria a “segunda realidade” de que Eric Voegelin fala. A
ideologia nada mais é que uma crença fanática, uma imitação perversa da
ciência. Com a queda dos totalitarismos (nacional-socialismo, comunismo)
também sua ideologia caiu, porque não era uma realidade “real”, mas sim
uma “segunda” realidade.
RC e AP: Parece que o uso da palavra “fascismo” ficou banalizado.
Tudo e todos contrários aos próprios ideais são chamados de “fascistas”.
Como o senhor vê isso?
HM: Em minha opinião, deve-se distinguir cuidadosamente entre
comunismo, fascismo, nacional-socialismo, de um lado, totalitarismo e
religiões políticas, de outro.
O comunismo, o fascismo, o nacional-socialismo são entidades
políticas que estão em sua ordem cronológica desde 1917. O totalitarismo
e as religiões políticas são marcas conceituais sumárias de políticos e
estudiosos (inclusive Amendola, Sturzo, Heller, Voegelin, Aron).
Embora o “fascismo” tenha se tornado um termo coletivo comumente
usado para o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, bem como
para seus Movimentos Trabalhistas na Segunda Guerra Mundial, o fascismo
histórico (italiano) se presta pouco a tal uso geral. O fascismo
italiano e o nacional-socialismo alemão são claramente diferentes. O
fascismo italiano tinha limites de expansão que faltam no
nacional-socialismo alemão; ele era organizado pelo Estado, enquanto na
Alemanha a sentença era: “O partido comanda o Estado”, e “o movimento”
agia sem restrições, sem restrições como a monarquia e a igreja na
Itália. Os “fascis” e os Camisas Negras de Mussolini, que são
reminiscentes das tradições romanas, diferem claramente da cor
marrom-terrosa [em referência aos “die Braunen” ou “Braunhemden” –
“marrons” ou “Camisas Marrons” do nacional-socialismo, pela cor de seu
uniforme] e das bandeiras esvoaçando ao vento, dos nacional-socialistas.
Em relação aos conceitos, deve-se dizer que o “totalitário”, no
sentido de uma política ilimitada, era apenas o comunismo e o
nacional-socialismo. O critério mais claro é o de uso de campos de
concentração e assassinatos em massa. O fascismo italiano não atinge o
mesmo grau de fusão do comunismo e do nacional-socialismo. Claro, ele
também é uma “religião política” (vide a própria tentativa do calendário
da “Marcha sobre Roma”!) [refere-se à manifestação que levou Mussolini
ao poder, quando houve a tentativa de implantar um novo calendário na
Itália: a proposta seria colocar o primeiro dia do ano zero, como o dia
em que a “Marcha sobre Roma” teria supostamente ocorrido: 28 de outubro
de 1922].
RC a AP: O senhor considera os conceitos de “totalitarismos” e
“religiões políticas” válidos para alguns movimentos na atualidade ou
algo já mudou?
HM: Eu acho que os dois conceitos não podem ser dispensados na
interpretação dos movimentos políticos contemporâneos. Quero apenas
relembrar exemplos grosseiros de totalitarismos recentes, como o milhão
de extermínios em massa na China Vermelha de Mao Tse Tung, e no Camboja
de Pol Pot.
RC a AP: Qual seria a diferença entre um líder verdadeiro e um líder totalitarista?
HM: Um líder legítimo é obrigado pela lei e pela justiça – ele
renuncia quando seu tempo acabou. Ele se move em uma normalidade
calculável. Um líder totalitário, por outro lado, não reconhece nenhuma
restrição legal; ele mantém o poder, que possui até o fim (Hitler,
Stalin, Mao). Ele se move em uma política exaltada; o poder não está
mais baseado na lei, mas na ponta das baionetas: todo conflito é
dirigido para o existencial “Entweder-Oder”[no português, “ou…ou”: ou
isso ou aquilo].
RC e AP: Como o senhor analisa o contexto político atual e o lugar da discussão sobre os totalitarismos?
HM: Sem dúvida, o mundo de hoje é mais transparente do que na época
do surgimento das ditaduras modernas. Sistemas totalitários não podem
ser estabelecidos tão facilmente como costumavam ser – as preparações
não passam despercebidas. Na “aldeia global” todo mundo vê o outro em
casa. Mas a globalização, em particular, tem suas desvantagens: é mais
fácil de penetrar, é mais vulnerável do que o Estado-Nação clássico. Ela
não só abre novos caminhos para o intercâmbio comercial e científico,
mas também oferece oportunidades para o crime global. Assim, um novo
totalitarismo não poderia permanecer um fenômeno local, mas atuaria e
agiria em todo o mundo.
Os ataques terroristas em Nova York em 11 de setembro de 2001, bem
como numerosas ações terroristas desde então, confrontaram o mundo –
provavelmente pela primeira vez desde as guerras religiosas do início do
período moderno – com perpetradores que confiavam em instruções
religiosas, sob as “ordens de Deus”. Este é um novo fenômeno de
fortalecimento de poder. Inquestionável, e com certeza você não pode ser
assim no mundo atual. A riqueza continuará sendo o preço da liberdade
também nos tempos futuros.
Rodrigo Coppe Caldeira é
Historiador e professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da
Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Adelaide de Faria Pimenta é
psicóloga e analista junguiana, doutoranda do Programa de Pós-graduação
em Ciências da Religião da PUC Minas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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