A questão é não imaginar o que leva alguém a generalizar o carácter, as
circunstâncias, as apetências e as vontades de quase quatro mil milhões
de criaturas, o número de mulheres existentes no mundo. A coluna de
Alberto Gonçalves, com sua fina ironia e texto primoroso, publicada aos
sábados pelo Observador:
Uma médica, Joana Bento Rodrigues, assinou no Observador um artigo
sobre “a mulher, o feminismo e a lei da paridade”. No dito, a senhora,
que é filiada no CDS, explica que a mulher “gosta de se arranjar e de se
sentir bonita. Gosta de ter a casa arrumada e bem decorada. Gosta de
ver ordem à sua volta. Gosta de cuidar e receber e assume, amiúde,
muitas das tarefas domésticas (…)”. Em simultâneo, a mulher “gosta de se
sentir útil, de ser a retaguarda e de criar a estabilidade familiar,
para que o marido possa ser profissionalmente bem-sucedido.” A mulher
também “é provida de um encanto, de uma ternura, que só se encontra na
sua relação com os filhos”. Para cúmulo, a mulher “é um ser belíssimo e
extraordinário”, e não um objecto, “presa para sexo fácil e espaço de
diversão”.
Previsivelmente, o artigo revirou as entranhas da Terra: nas “redes
sociais”, e não só nas “redes sociais”, milhares de cidadãos insistiram
em pronunciar-se a propósito. Uma minoria (pareceu-me uma minoria)
concordou com a dra. Joana e declarou que a mulher corresponde
precisamente às maravilhas acima descritas. A maioria (pareceu-me a
maioria) tentou levar simbólica ou literalmente a dra. Joana à forca, na
convicção de que a mulher é o exacto oposto de tais maravilhas: a
mulher não é fútil, a mulher não é subalterna, a mulher não é
dependente, a mulher não é púdica, a mulher não é doméstica, a mulher
não é um adereço, a mulher não é dócil, a mulher não é parideira.
Em ambos os casos, de que mulher falamos? Absurdamente, de todas.
Naturalmente, de nenhuma. Não é questão de discordar do artigo da dra.
Joana, ou das reacções ao mesmo. A questão é não imaginar o que leva
alguém a generalizar o carácter, as circunstâncias, as apetências e as
vontades de quase quatro mil milhões de criaturas, o número de mulheres
existentes no mundo. Haverá as que alcançam o nirvana a produzir sopa e
bebés. Haverá as exclusivamente devotadas a uma carreira na ciência, nos
negócios ou na indústria dos resíduos sólidos. Haverá as que vão à
missa e as que não vão à missa com a fé. Haverá as que são de rua, as
que saem à rua e as que não saem de casa. Haverá as que exigem subir
pelo mérito e as que se contentam em subir por quotas. Haverá as que não
desejam subir a parte alguma. Haverá as que querem conciliar tudo e as
que não querem conciliar nada.
O que nunca haverá é paciência para os prosélitos da dra. Joana e
para os indignados com a respectiva cartilha, os quais, por oportunismo,
arrogância, delírio ou projecção, tendem a ignorar que, salvo pelas
fanáticas dos dois lados da trincheira, cada mulher é uma pessoa com
interesses particulares e contraditórios entre si. E uma pessoa que,
salvo melhor informação, não passou a essa gente procuração para falar
em seu nome. Falar da mulher em sentido lato é tão razoável quanto eu
afirmar que os Albertos em peso apreciam ovos escalfados e a terceira
temporada de “True Detective”.
Por azar, o problema com as generalizações não é apenas serem
cretinas: é serem abundantes. Em pleno século XXI (essa frase deliciosa e
vazia), a consagração das “políticas identitárias” está a conduzir o
Ocidente de regresso à saudosa década de 1950, quando se catalogava a
humanidade pelas importantíssimas categorias do género, da orientação
sexual, da cor e do calhava – logo que o género, o sexo, a cor e o que
calhar preencham certos requisitos. Um homem, heterossexual, branco e
assim não é de grande serventia, excepto a de alvo de protestos
sortidos. O resto é invariavelmente de valor, e constitui factor
fundamental na construção das “identidades” individuais, por acaso assaz
semelhantes às colectivas. Nestes avariados tempos, antes de ser
engenheira, hipocondríaca e fã de Springsteen, a Isabel é mulher. Antes
de ser cozinheiro, alcoólico e míope, o Paulo é gay. Antes de ser
professor de Francês, bipolar e pai de dois rapazes, o Artur é preto. E a
Rita, que é mulher, lésbica, mestiça e praticante de candomblé, ganhou a
lotaria da vítima e o jackpot da opressão: o direito a maçar terceiros
com irrelevâncias que não lhes dizem respeito.
Não vale a pena lembrar que as irrelevâncias biológicas substituíram
as contingências laborais na luta da esquerda pelo conflito perpétuo.
Talvez valha a pena notar que não é a substituir uns estereótipos por
outros que a direita vai lá. Na essência, a “mulher” da dra. Joana do
CDS não difere da “mulher” da dra. Catarina do BE. Na ânsia de se
apoderarem das cabeças alheias, conservadores e progressistas
esgadanham-se para reduzir sujeitas de carne e osso a entidades míticas,
caricaturas, marionetas ao dispor de alucinados. Felizmente, tirando as
próprias alucinadas, estas mulheres são imaginárias. E as verdadeiras
têm mais o que fazer, incluindo, se possível, fazer o que lhes apetece.
Nota de rodapé:
Um antigo vencedor do “Big Brother” brasileiro veio palestrar à
universidade de Coimbra, com honras e recepção a cargo do sociólogo
Boaventura Sousa Santos. Não consigo encontrar nada de inadequado no
facto acima, pelo que não o comento.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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