O melhor esconderijo é onde ninguém se lembra de procurar: à vista de
todos. Enquanto os olhares focarem na direita, poucos verão que o
populismo habita sobretudo na esquerda à beira de tomar o poder. Artigo
de Alexandre Homem Cristo, publicado pelo Observador:
As palavras têm uma força imensa – é através delas que construímos o
nosso entendimento dos fenómenos sociais. É por isso que o combate
político se ganha quase sempre controlando a linguagem. Fazê-lo é
escolher o léxico com que se debate determinado fenómeno, é delimitar a
primeira percepção geral sobre o problema em causa, é impor à partida
uma visão política, é definir a ortodoxia. É, portanto, a forma mais
eficaz de controlar a reflexão sobre um tema: normaliza um certo
posicionamento político, impõe-no como senso-comum e, por fim, dificulta
o aparecimento de visões alternativas, que passam a ser
contra-intuitivas.
Lembrar que existem inúmeros casos na história de controlo político
da linguagem é apenas dizer o óbvio – de uma forma ou de outra, foi
sempre essa a ambição dos regimes autoritários. Mas é um erro de análise
comum circunscrever a questão aos regimes autoritários, obcecados com o
controlo populacional. Nas democracias liberais, a linguagem está no
centro do combate político e cada partido faz os possíveis para
conseguir normalizar a sua visão, para assim obter uma vantagem legítima
sobre os adversários. Daí que os políticos recorram reiteradamente a
frases sonantes e expressões originais. Daí que os partidos façam
corridas para introduzir primeiro um tema na agenda. Daí que os partidos
se estendam a várias organizações (como sindicatos), assim
multiplicando os canais de transmissão da sua forma de ver o mundo e
transmitindo uma falsa ideia de consenso em seu redor. Em Portugal,
todos os partidos o fazem. Por exemplo, à direita, a expressão
“geringonça” foi inscrita no debate com o propósito de descrever a
maioria de apoio ao governo PS como algo atabalhoado e frágil. À
esquerda, o uso reiterado de expressões como “precariedade” impôs um
enquadramento para qualquer debate sobre legislação laboral.
Tudo isto é normal e legítimo num regime democrático. Onde se torna
ilegítimo é quando o domínio da linguagem serve para ostracizar
adversários e lhes retirar legitimidade política. Essa é uma fórmula
anti-democrática, que converte adversários em inimigos, que transforma
discordância em delito de opinião, e que aproxima o combate político de
uma guerra total que visa a aniquilação do inimigo. E é isso que temos
visto um pouco por todo o mundo à boleia dos populismos que procuram
tomar conta do sistema político – polarização total e campanhas
eleitorais focadas quase exclusivamente na destruição do campo oposto.
Em Portugal, observa-se uma caça-às-bruxas em busca das sementes do
populismo anti-democrático – e não faltam alegados paladinos da
democracia a acusar a direita de estar a conjecturar um ataque aos
alicerces do regime (basta ler Francisco Louçã, Daniel Oliveira, Isabel
Moreira, entre outros). O que é extraordinário é que essa caça-às-bruxas
é, ela própria, a expressão maior do estado do populismo em Portugal:
procura assentar o entendimento geral de que a direita não tem
legitimidade democrática, dificulta a apresentação de alternativas
políticas à direita e normaliza o radicalismo dos partidos eurocépticos
da nossa esquerda.
Está em curso, portanto, uma batalha pelo domínio da linguagem, neste
caso pela definição de “populismo”. Uma batalha que, como se percebeu
na convenção do Bloco de Esquerda deste fim-de-semana, é fundamental
para o processo de reabilitação dos bloquistas: a melhor forma de se
apresentar como moderado (para chegar ao governo) é acusar os outros de
radicalismo (na direita). Afinal, o melhor esconderijo é mesmo onde
ninguém se lembra de procurar: à vista de todos. Enquanto os olhares
estiverem a ser direccionados para a direita, poucos verão que as
manifestações de populismo vêm, sobretudo, de uma esquerda que está à
beira de tomar o poder.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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