Nunca simpatizei por
aí além com a expressão “politicamente correcto”. É verdade que ela
serve perfeitamente para designar em termos gerais uma atitude muito
corrente nas nossas sociedades, pelo menos desde os anos noventa do
século XX: o policiamento activo de certas formas de comportamento, em
particular do uso da linguagem, que anteriormente se classificariam
naturalmente de indiferentes. O problema que vejo na expressão é que ela
não revela o fundo patológico que torna esse tipo de atitude malsã e
deletéria: a ideia que, precisamente, nada há que seja indiferente e que
tudo, mas mesmo tudo, é merecedor de vigilância social apertada.
A ideia que nada é
indiferente e que tudo é susceptível de um juízo moral tem um nome
óptimo: micrologia. Um micrólogo é alguém que sofre de uma compulsão
extrema a emitir juízos sobre os mínimos detalhes dos comportamentos dos
outros. Se bebe cerveja, não devia: devia beber vinho. Se bebe vinho,
que horror!, devia beber cerveja. E por aí adiante. Em tempos passados,
havia muitas maneiras de lidar com este tipo de maluquinhos e,
descontando os casos mais agressivos, eles não ameaçavam ninguém. O
problema hoje em dia é que a micrologia se tornou uma espécie de
religião de Estado. O Estado não pára de micrologizar um só instante,
ajudado por prestimosos bandos que descobriram na possibilidade de uma
qualquer especialização micrológica uma razão de vida e, às vezes, um
modo de vida. Que isso ameaça a nossa liberdade é algo que salta aos
olhos, pelo menos a quem tenha olhos para a liberdade.
Como vivemos tempos
de neurose e má-fé, é necessário acrescentar o óbvio. A existência de
uma certa dose de vigilância social sobre algumas formas de
comportamento que tendemos a entender como indiferentes (no uso da
linguagem, por exemplo) não só não é um mal como constitui um factor
civilizacional. É no mínimo discutível que os efeitos por ela produzidos
resultem na modificação da nossa natureza, mas a hipocrisia é
necessária à vida social. E se acreditarmos na ideia segundo a qual um
progresso para o melhor na vida social é possível e desejável, a
hipocrisia recomenda-se mesmo. Apesar de tudo, pode bem acontecer que a
máscara se cole à pele. A civilização é isso, e não há nada de
patológico nisso.
Dito de outra
maneira. Por mais cépticos que sejamos em relação à eventualidade dos
nossos queridos corações caminharem velozmente em direcção a perfeições
nunca vistas, há uma espécie de obrigação de pensarmos que um progresso
para o melhor é possível. Um progresso sem dúvida artificial, fenomenal e
não essencial, mas progresso à mesma. E é legítimo (do meu ponto de
vista, muito desejável) estabelecer uma narração conjectural desse
progresso que compreenda todos os momentos de relativa vitória sobre
dominações sortidas. Nessa narrativa conjectural, que contém em si a
ideia de um sentido da história construído por nós mesmos, igualdade e
liberdade caminham juntas sem contradição alguma.
Onde é que a
patologia aqui se introduz? Em larga medida, quando o progresso é visto
como dando-se nos nossos próprios corações e como obedecendo a uma
necessidade de qualquer espécie e não a um gesto de liberdade. Quem
assim entende as coisas, gente pouco aliviada que se dá importância,
logo aspira ao lugar de vigilante administrador dos costumes, uma
situação favorável aos delírios de virtude. E é com essa gente que o
perigo começa a espreitar e a liberdade a fugir. A obsessiva micrologia
introduz-se em todo o lado. O processo é favorecido pela omnipresença de
um Estado tutelar e infantilizador que cria indivíduos à partida
disponíveis a desempenharem o papel de clientes anónimos da Igreja
Universal da Micrologia.
Como em todos os
casos destes, a única solução é lembrar-lhes que ninguém lhes encomendou
o sermão. E que o espaço do indiferente existe mesmo. Sem ele não há a
liberdade de que não gostam.
PS. Sem nada a
ver com isto. Li no outro dia, numa biografia de Cícero, que no tempo
dele os edis de Roma, aquando da organização das festas da cidade, eram
obrigados, se queriam caprichar no espectáculo, a completarem o magro
orçamento disponível com dinheiro dos seus próprios bolsos. Quando
ocupou o cargo, Cícero lá arranjou maneira de salvar as aparências e,
depois dele, César endividou-se a valer. Talvez valesse a pena os nossos
presidentes de Câmara seguirem essa velha prática romana. Mal não
fazia, de certeza.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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