Professor de Filosofia
no Porto, Paulo Tunhas escreve em seu mais recente artigo publicado no
Observador sobre os terríveis massacres perpetrados na Indonésia nos
anos 60. De fato, sempre é possível que aconteça o pior:
Espinosa
aconselha-nos, na última parte da Ética (escólio da proposição X, para
os interessados), a contemplar o menos possível os vícios dos homens. A
justeza do propósito parece impecável, e eu apenas acrescentaria: a
começar pelos nossos próprios. Não sei se é lícito ou não, mas a
sugestão parece-me alargável às coisas políticas. Por uma razão desse
tipo, desde há muitos anos que pouco leio, por exemplo, sobre campos de
concentração nazis ou comunistas. Li na altura certa – isto é, muito
novo – alguma da literatura sobre a matéria e, sem de modo algum ter
tido o sentimento de compreender perfeitamente o horror (o que seria
tontice, até porque a tarefa é infinita), algo me levou a pensar, e
ainda penso, que fiquei a saber no capítulo o suficiente para me
orientar politicamente. E, sobretudo, que nesta curta vida convém, se
possível, guardar mais tempo para pensar o melhor do que o pior.
Há, no entanto,
alturas em que o pior salta aos olhos com tanta força que é impossível
não fixar nele o olhar. Aconteceu-me no outro dia ao ver dois
documentários realizados por Joshua Oppenheimer em 2012 e 2014: The Act
of Killing e The Look of Silence. Os documentários lidam com os
assassinatos em massa de comunistas, ou de tudo o que apetecesse
designar assim, praticados por gangsters a soldo do exército na
Indonésia em 1965 e 1966. O número de mortos oscila, como sempre
acontece nestas coisas, muito. Vai de 500.000 pessoas a três milhões.
Mas isso não é o essencial do que os documentários, sobretudo o
primeiro, fazem pensar. Como não é o essencial o contexto – a Guerra
Fria e a transição do regime de Sukarno para o de Suharto – em que
tiveram lugar. Obviamente importante, mas aquém da revelação essencial
na qual somos introduzidos. O essencial está naquilo ao qual é difícil
atribuir um nome e que, muito genericamente, se pode talvez chamar a
felicidade na recordação do acto de matar.
Joshua Oppenheimer
foi procurar alguns dos perpetradores dos massacres e entrevistou-os,
pedindo-lhes para relatarem os detalhes mais ínfimos das suas operações.
E, meu Deus, como eles generosamente assentiram ao pedido! Nessa
generosidade começa logo a terrível estranheza do documentário.
Relembrar aqueles momentos foi para aquela gente, na maioria com o
aspecto normalíssimo que uma certa velhice concede, um prazer. E, quando
não um prazer, algo que podia ser levado a cabo sem qualquer incómodo
visível ou conjecturável. O sentimento de impunidade de que gozavam
presentemente (a protecção governamental é explícita) ajudava certamente
à boa consciência. Mas era mais do que isso, é claro: a naturalidade do
acto de matar está presente a todo o instante. E o que é concebido como
natural pode viver-se com alegria. Parece que Estaline organizava, em
certos jantares no Kremlin, paródias em torno das confissões finais dos
acusados nos processos de Moscovo, que muito o faziam rir, bem como aos
restantes comensais. Imagino que o processo mental desse riso fosse
análogo.
Não vou entrar no
relato das torturas e dos assassinatos. Apenas noto a tecnicidade com
que ambas são descritas, bem como a insistência na utilidade de certos
métodos, nomeadamente num fio de arame que, puxado pelas suas
extremidades, degola com formidável eficácia as vítimas. E no orgulho na
crueldade própria, favoravelmente comparada com a dos nazis. Eles, e
não os comunistas, gabam-se, eram verdadeiramente cruéis. Mas atenção:
crueldade não significa sadismo. Numa delirante discussão semântica, a
distinção é feita por um dos participantes. Que, já agora, organizavam
reuniões familiares, com mulheres e criancinhas, onde em conjunto
mimavam a captura, a tortura e o assassinato dos presos, como que para
transmitirem oralmente os seus passados feitos.
Ignoro se foi isso
que levou Joshua Oppenheimer a uma ideia de génio, que alça o
documentário a uma dimensão que nunca antes me tinha sido conhecida ou
sequer vagamente imaginável: convidar aquela gente a fazer um filme
sobre as suas passadas actividades. Uma ideia que, mais uma vez, recebe
um acordo entusiasta. E o documentário dá-nos a ver uma parte dos
ensaios e da realização do filme.
Aqui mergulha-se na
mais extrema e radical irrealidade. Como se costuma dizer, usando a
palavra com a habitual falta de rigor: é surrealista. Encenam-se
entusiasticamente violações em massa, torturas e assassinatos. Uma cena é
particularmente memorável. Na filmagem de uma tortura que acaba com a
morte do torturado pela tal técnica da degolação com o fio de arame que
mencionei, o “actor”, que havia utilizado a eficaz técnica vezes sem
conta, confessa ao realizador uma sua curiosa dúvida: será que as
pessoas que ele assim tinha morto sentiram um terror idêntico ao que ele
sentira no momento da filmagem? Ao que Joshua Oppenheimer, que não faz
praticamente ouvir a sua voz ao longo do documentário, responde, para
aparente surpresa do outro, que tinha sido bem pior: que os mortos
sabiam que iam morrer e que ele sabia que era apenas um filme. Olhar de
surpresa no rosto do actual “actor”. Que não abala, apesar de algumas
indicações em contrário, a sua boa consciência. Na cena final do
“filme”, de um kitsch dificilmente imaginável (tudo no fime é
dificilmente imaginável, mas aquilo ultrapassa tudo), contra o pano de
fundo de umas meninas que dançam em frente a uma cascata, e ao som da
canção “Born Free”, as vítimas passadas agradecem com um beijo aos seus
assassinos o terem-nas matado e lhes terem permitido ir para o Céu.
Tudo isto apenas pode
dar uma pálida imagem do contacto directo com o horror que The Act of
Killing nos dá. Deixei totalmente de lado The Look of Silence, onde o
irmão mais novo de alguém torturado e morto de forma particularmente
cruel em 1965 parte em busca dos perpetradores do crime e os interroga,
enquanto (é oftalmologista) lhes faz testes de visão para novos óculos.
Se bem que não de forma tão decisiva como o primeiro documentário,
também este nos mergulha fundo naquele mundo terrível.
Agora, podemo-nos
perguntar: será que tudo isto seria possível fora de uma cultura onde o
acto de matar seja agraciado com uma naturalidade transcendente? Ignoro
praticamente tudo sobre a cultura indonésia (gosto da comida – difícil,
de resto, de encontrar em Portugal), mas lembro-me de uma coisa que um
antigo amigo antropólogo que se deslocava praticamente todos os anos a
Timor há muito me disse: eu ignorava por inteiro (referia-se a Timor) a
inacreditável violência e crueldade daquela sociedade. Seja como for,
coisas dessas aconteceram em grande escala, como se sabe, na Europa, e
mais vale ter em mente aquela frase (creio) de David Rousset, citada por
Arendt em As origens do totalitarismo, depois da sua passagem por um
campo de concentração alemão e antes da sua denúncia dos campos de
concentração russos, fulminada por Sartre e pela esquerda em geral: “As
pessoas normais não sabem que tudo é possível”.
“As pessoas normais
não sabem que tudo é possível.” Saber que tudo – inclusive o pior dos
piores – é possível é algo que devemos ter sempre presente, mesmo quando
pensamos o melhor: o verdadeiro, o belo e o bom, como dantes se dizia.
Até porque sem essa consciência o melhor não pode ser verdadeiramente
pensado. É a moral da história. E os documentários de Joshua Oppenheimer
lembram-nos isso na perfeição.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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