Brilhante
artigo do professor João Carlos Espada sobre as eleições francesas, que
demonstraram a persistência do Estado-nação e do "sentimento nacional",
tão repudiado pelo racionalismo dogmático: "a democracia
liberal", ressalta ele, "não pode nem deve ignorar o sentimento
nacional. Os partidos centrais da democracia francesa, agora seriamente
enfraquecidos, fariam bem em refletir sobre este tema":
No
rescaldo da primeira volta das perturbantes eleições presidenciais
francesas de ontem, limito-me por agora a salientar dois aspectos:
Em
primeiro lugar, os dois partidos centrais da democracia francesa — os
Republicanos, ao centro-direita, e os Socialistas, ao centro-esquerda —
ficaram em ruínas. Nenhum dos seus candidatos estará na segunda volta.
Em conjunto, não terão alcançado 30% dos votos. Isto merece uma análise
ponderada, pois terá necessariamente consequências muito sérias para a
democracia em França. E deve ser olhado em perspectiva comparada com o
que sucedeu no Reino Unido e nos EUA.
No Reino
Unido, uma ruptura política radical — a decisão de sair da UE — não
afectou a solidez dos partidos tradicionais. O partido político que
associou essa decisão a uma revolta popular contra “o sistema” — o Ukip
de Nigel Farage — tem hoje 7% nas sondagens e não detém neste momento
nenhum deputado no Parlamento britânico (o único que tinha acabou de se
demitir).
No caso
dos EUA, a vitória presidencial de Donald Trump ocorreu em simultâneo
com uma muito expressiva vitória dos candidatos republicanos nas duas
Câmaras do Congresso e na maioria dos estados. Mas a candidatura de
Donald Trump não recebera o apoio da maioria dos congressistas e
governadores republicanos entretanto reeleitos. Isso significa que, à
semelhança do que ocorrera no Reino Unido, uma ruptura política radical —
a eleição de Trump — não conseguiu abalar os partidos tradicionais.
Em
França, pelo contrário, não apenas um, mas os dois partidos centrais
foram eclipsados. Simultaneamente, e este é o segundo aspecto que
gostaria de sublinhar, o apagamento dos partidos centrais em França
ocorreu numa campanha eleitoral dominada pelo sentimento nacional. Pelo
menos oito, talvez mesmo nove, dos onze candidatos centraram a sua
mensagem, de uma maneira ou de outra, na restauração da identidade e da
soberania gaulesas.
O
fenómeno parece acompanhar o que terá sucedido noutros lugares: no
referendo britânico de Junho passado, centrado na restauração da
soberania do Parlamento nacional; na campanha de Donald Trump nos EUA;
nas turbulentas eleições da Holanda em Março; e certamente também no
discurso político crescentemente dominante em vários países da Europa
central e oriental. Como interpretar este regresso do sentimento
nacional ao núcleo das paixões políticas de democracias liberais
desenvolvidas e abastadas?
Para iniciar a reflexão sobre esta pergunta crucial, recomendo vivamente a leitura da mais recente “Seymour Martin Lipset Lecture on Democracy in the World”,
acabada de publicar na edição de Abril do Journal of Democracy. Ghia
Nodia, um respeitado académico da Geórgia, desenvolve aí uma profunda e
muito estimulante reflexão sobre a relação entre o sentimento nacional e
a democracia.
O ponto
de partida de Nodia é muito saudável: ele confronta as teorias
dominantes sobre o chamado “nacionalismo” com os factos. Recorda, em
primeiro lugar, que no século XIX o sentimento nacional esteve sobretudo
associado ao crescimento da ideia de auto-governo democrático; em
segundo lugar, que a resistência ao comunismo soviético esteve sempre
associada ao sentimento nacional dos povos da Europa central e oriental;
e, como referi acima, que o sentimento nacional parece estar de volta
em democracias liberais tão desenvolvidas como o Reino Unido, os EUA, a
Holanda e a França.
Os
factos parecem por isso indicar uma séria dificuldade nas teorias
dominantes sobre a obsolescência do Estado-nação e do sentimento
nacional. De acordo com essas teorias, o Estado-nação estaria condenado a
desaparecer, sobretudo devido à globalização e ao alegado atavismo do
sentimento nacional. No entanto, as previsões dessas teorias parecem
estar a ser refutadas pelos factos. Porquê?
Uma
profunda razão filosófica, que não é possível discutir neste espaço,
prende-se com o equívoco do Iluminismo continental. Ghia Nodia
correctamente observa que houve vários Iluminismos, uns mais sóbrios do
que outros. Mas, no continente europeu, foi sobretudo o Iluminismo
francês (a que Karl Popper chamou de racionalismo dogmático) que
perdurou. Esse racionalismo dogmático (por contraposição ao racionalismo
crítico, de base céptica e experimental) acredita que sabe, sem saber
que acredita. Aspira por isso a eliminar todas as tradições que não
possam ser geometricamente demonstradas e a desenhar um mundo novo
através da chamada engenharia social.
Para
este racionalismo dogmático (a que F.A. Hayek também chamou
“racionalismo construtivista”), o sentimento nacional é certamente uma
das expressões primordiais (a par da religião) de tradições que não
podem ser demonstradas geometricamente. Isto explica por que motivo o
racionalismo dogmático gera uma profunda hostilidade contra o sentimento
nacional, bem como contra o sentimento religioso. Em contrapartida,
essa hostilidade racionalista em regra produz uma reacção crispada dos
sentimentos nacional e religioso — gerando aquilo que Tocqueville
designou por “estéril conflito entre revolução e contra-revolução”.
Em
segundo lugar, existe um erro mais prosaico na hostilidade do
racionalismo dogmático contra o sentimento nacional: o racionalismo
dogmático ignora o papel crucial do sentimento nacional na viabilização
da democracia liberal (ou constitucional). Sem sentimento de pertença a
um todo superior às partes — em regra, o todo nacional — não é possível
auto-governo em liberdade: as minorias tenderão a não aceitar as
vitórias eleitorais das maiorias; as maiorias tenderão a perseguir as
minorias.
Por
outras palavras, é em última análise o sentimento nacional partilhado
que viabiliza o princípio demo-liberal do “governo da maioria, direitos
das minorias.” Esta razão (que, como vimos, não é a única) seria
suficiente para concluir que a democracia liberal não pode nem deve
ignorar o sentimento nacional. Os partidos centrais da democracia
francesa, agora seriamente enfraquecidos, fariam bem em reflectir sobre
este tema. (Observador).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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