Apesar dos inúmeros antecedentes, não esperava isto: uma das maiores demonstrações de desprezo de um chefe de Estado pelos cidadãos a que formalmente preside. Via Observador, a crônica de Alberto Gonçalves:
O
verdadeiro Natal é em Belém. Foi também o primeiro, dado que ocorreu na
quarta-feira. E o mais bonito, porque não sei de coisa tão comovente
quanto um governo de criaturas mal ajambradas e risonhas que vai ao
palácio presidencial saudar o prof. Marcelo e, de seguida, ouvi-lo.
Naquele ambiente sagrado e puro não cabem as distracções pagãs que a
modernidade infligiu às festividades, sobretudo o daninho bicho do
consumismo. Pelo contrário: a ladainha do prof. Marcelo versou
justamente a possibilidade, assaz próxima, de os portugueses não
conseguirem consumir seja o que for. Mas já lá vamos.
O
prof. Marcelo começou por lembrar ao governo que o governo é impecável e
não tem culpa de nada, nada, nada do que acontece ao país. As eventuais
desgraças que nos caem em cima, aliás discutíveis e toleráveis, são,
evidentemente culpa da guerra. Como antes as desgraças eram culpa da
Covid. E antes de Pedro Passos Coelho. E antes do Pitecantropo de Java. E
em breve das alterações climáticas. De momento, porém, a culpa é da
guerra, a malvada da guerra que andou anos a espalhar dinheiro para as
pessoas ficarem em casa, que disseminou a corrupção nos cargos públicos,
que rebentou com os serviços de saúde, que aumentou exponencialmente a
dívida pública, que leva o fisco a devastar o rendimento alheio, que
encolherá o poder de compra a níveis de 1980, que empurra os avisados
para o estrangeiro e Portugal para os fundilhos da Europa alargada,
incluindo da Roménia que, à semelhança das demais nações, é pouco
afectada pela guerra e pela Covid e por Pedro Passos Coelho.
Perante
isto, o prof. Marcelo notou que, devagarinho, o povo tenderá a
esquecer-se de que a guerra é a culpada pelas dificuldades em comprar
comida e pagar a prestação da casa e, absurdamente, poderá sentir-se
tentado a responsabilizar os governantes. “É um fenómeno psicológico
estranho”, explicou Sua Excelência. O nome técnico é estupidez. Sendo
por definição estúpido, o povo às vezes incorre no crime de ingratidão
para com os estadistas que sabiamente o guiam. O prof. Marcelo chegou a
alertar para o risco de, na ceia natalícia e face ao preço do bacalhau,
haver a ocasional família a criticar – “baixinho”, especificou – os
senhores no poder. No limite, é possível haver quem proteste “a falta de
dinheiro e de saúde”, disse o prof. Marcelo, “metendo-se com Manuel
Pizarro”, cito a descrição do Observador, “que ia sorrindo ao fundo da
sala”.
A
pobreza e a ausência de cuidados médicos são naturais temas de galhofa
para os eleitos que não os sofrem. No seu gentil primitivismo, o povo
que os elege é que pode não perceber a piada e enervar-se. Contudo,
ressalva o prof. Marcelo, o povo não se enervará demasiado.
Manifestações a sério, insurreição geral, motins não são para nós.
Embora burros o bastante para, acidentalmente, recriminar o dr. Costa em
lugar do sr. Putin, os portugueses, prosseguiu o antigo docente,
possuem “uma sabedoria de 900 anos”, logo “muito do que os outros estão a
descobrir nós já conhecemos”. Ninguém perguntou de que modo tamanha
sapiência nos deixou na indigência actual, atrás de 95% do Ocidente
cristão. Ainda bem. O importante é compreender que, se a experiência de
900 anos não nos deu grande prosperidade, liberdade ou juízo, deu-nos o
valor supremo do “civismo”.
Onde
é que o prof. Marcelo constatou esse “civismo”? Ora essa: nas cheias,
na pandemia e, acrescento eu, em cada situação em que os portugueses são
confrontados com o brutal desrespeito que as autoridades lhes dedicam.
Na curiosa definição presidencial, “civismo” é a inclinação das massas
para a resignação e a obediência, a genérica incapacidade para
entenderem ou sequer procurarem a origem dos factos, a facilidade com
que se entregam a manipulações toscas ou esmolas humilhantes. “Civismo”,
afinal, é em simultâneo sinónimo e causa do atraso de vida. O prof.
Marcelo desenvolveu: salvo eventuais e inconsequentes resmungos – em
surdina, claro –, “os portugueses gostam de jogar pelo seguro”, pelo que
“já se ajustaram aos efeitos da guerra”. Ou seja, já se conformaram à
miséria que aí vem e à condenação de sobreviver mediante “apoios”
cínicos ou inscrição no PS. Tivemos 900 anos para aprender a arte de
engolir patranhas e propaganda.
Ignoro
se algum dos presentes chorou. Eu teria chorado. Não esperaria do prof.
Marcelo o Discurso de Gettysburg, ou mesmo qualquer palavrório menos
superficial que um folheto do Lidl. No entanto, e apesar dos inúmeros
antecedentes, não esperava isto: uma das maiores demonstrações de
desprezo de um chefe de Estado pelos cidadãos a que formalmente preside.
Na cabeça do prof. Marcelo, cujo conteúdo se vai revelando com
crescente frequência, os portugueses não passam de excrescências sem
vontade ou amor próprios, criancinhas confusas a ludibriar, figurantes
em histórias que a elite de poderosos lhes conta. Este foi o conto de
Natal.
No
final da sessão, a elite posou para a fotografia oficial. Parecia um
presépio. Um presépio em que os protagonistas habituais se viram
substituídos pela Comissão de Festas da Aguçadoura, só que com pior
aspecto e sem ofensa para a Comissão de Festas da Aguçadoura. Ofendidos
somos todos nós. E a maioria, que dá razão ao prof. Marcelo, nem repara.
Postado há 14 hours ago por Orlando Tambosi

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