Uma diferença tão simples quanto básica, no Direito, e aprendida por todos os estudantes já no primeiro semestre do curso, é a de que “tudo que não é juridicamente proibido é juridicamente facultado”, ou seja, permitido.
Eis o princípio geral da Liberdade, ou Liberalismo Político, firmado desde O Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau (1762) e as declarações universais de direitos que lhe sucederam, tendo por marco universal histórico no Direito Positivo o texto da Constituição Americana de 1787, até hoje em vigor e que inspirou quase todas as Cartas democráticas do planeta.
Não obstante a isso e em lógica completamente diversa está o Direito Público, conjunto de normas que definem a atuação do Estado, dentre outras funções, perante a possibilidade de restrição dessa liberdade original do cidadão.
E tal só se dá mediante o primado da lei, criada pelos legítimos representantes do povo eleitos e com mandato limitado no tempo, do que é consectário imediato a Segurança Jurídica. Explico.
O Estado, seja por qualquer de seus “poderes constituídos” em sua forma contemporânea compreendida como Estado Democrático de Direito – Legislativo, Executivo, Judiciário e, paralelamente, o Ministério Público, não pode agir senão com base em lei.
Em simples definição: nenhum agente público, seja ele ministro (juiz) de uma Suprema Corte, seja um funcionário executor de ordens, dispõe de “liberdade” no exercício de seu cargo (missão ou função) pública.
E é justamente por isso que, por exemplo, diversos autos de infração tributária lavrados, ou mesmo de trânsito, são anulados via ação judicial, por atentarem quanto à forma prevista em lei, ou mesmo processos inteiros.
Até mesmo os que tramitam perante um “juiz natural competente” são invalidados pelo mesmo juiz que dirige a causa, se se perceber, a qualquer momento, que qualquer das garantias legais do cidadão foram violadas de modo irretorquível, como a falha ou ausência de citação do réu, ou, ainda, a ausência de fundamentação em uma sentença. Uma dos motivos para a existência de medidas como a “querela nullitatis”, a Exceção de Pré-executividade, a Ação Rescisória, a Revisão Criminal, o Mandado de Segurança e o “Habeas Corpus”.
Então, como explicar tantos “entendimentos” divergentes de magistrados e de tribunais e a mudança de seu “comportamento valorativo” no teor de suas decisões, muitas vezes em casos sobre os quais sequer a lei foi modificada?
Como explicar a escolha de lugar e de tempo que um gestor público faz ao determinar ou não, a guisa de exemplo, a construção de uma ponte, uma desapropriação para construção de um viaduto ou a decisão por um lançamento de edital de um concurso?
Não há que se confundir “liberdade” com “discrição administrativa”. Esta são alternativas impostas, previstas e também limitadas pela lei ao agente estatal e em que se exige, além da fundamentação (motivação) do ato, prévios pareceres autorizativos de ordem técnica (jurídica, sanitária, fiscal, contábil etc), bem como a “solução ótima” que deve ser sempre perseguida pela administração pública e que fica sob o crivo da avaliação posterior dos ditos “órgãos de controle”, sejam estes internos ao órgão ordenador, ou os externos – como a CGU, os tribunais ou conselhos de contas e o próprio Ministério Público.
É possível, ainda, esse “controle externo” mediante provocação até mesmo por qualquer cidadão via Ação Popular, a ser, então, realizada pelo Poder Judiciário que seja competente para verificar a legalidade do ato ou decisão, ainda que, para isso, precise aferir se a razoabilidade e a proporcionalidade concreta (solução ótima) do ato do administrador público foram obedecidas (vide: Lei 9.784/99, Art. 2º).
Mesmo o Poder Judiciário, dito por muitos, com razão, ser “a última trincheira da Democracia”, e justamente por esta função de controle que também exerce, submete-se, com ainda maior sentido, a uma série de controles, seja de ordem administrativa (corregedorias de tribunais, Conselho Nacional de Justiça, Ministério Público e tribunal de contas, este último em relação ao aspecto contábil-financeiro-orçamentário), sejam de ordem processual, por meio de ações e recursos a instâncias competentes, normalmente superiores ao “juiz” ou órgão judicial que edita a sua decisão, que, como já apontamos, por também manifestar uma “vontade do Estado”, necessita sempre de fundamentação específica em lei válida para se legitimar no modelo contemporâneo de Estado Democrático.
Exerce o juiz não um “livre convencimento”, como erroneamente foi ensinado por décadas nas Escolas Jurídicas, mas o seu “convencimento racional”, com a mesma independência, mas afinada com a lei, desde o advento da Queda da Bastilha, o que não se confunde, mais uma vez, com a franca liberdade privada que dispõe o cidadão (Vide Art. 371 c/c Art. 489 do Novo CPC).
Esse “apego à lei”, ou primado da lei, conhecido por Princípio da Legalidade, juntamente com outro princípio fundamental à existência e funcionamento do Estado, que é menos conhecido dos não-juristas, é o Devido Processo Legal ou “Due Process of Law”.
É isso que permite às instituições oficiais funcionarem em “harmonia”, sem perderem seus atributos de “independência” (poderes constituídos da República, como um todo) ou sua “autonomia” (alguns órgãos públicos, como os tribunais judiciais, e entidades estatais e paraestatais: autarquias e fundações e empresas sob o controle acionário majoritário ou total do Estado).
No Direito Penal, área específica do Direito Público que recrimina condutas contrárias aos mais altos valores e à ordem social vigentes num país, esse apego ao ditame da lei é ainda mais grave, justamente porque lida diretamente com a liberdade do indivíduo, concebida, como já levantada no primeiro parágrafo deste ensaio, como valor mais relevante da cidadania.
Nesse sentido é que não se pode conceber, em qualquer Estado de Direito, estruturado nos moldes acima descritos, como é o caso da República Federativa do Brasil reconstituída pela Carta de 1988, que autoridades sem atribuição ajam, ferindo, assim, o império da lei, garantia maior do cidadão (e, automaticamente, a sua liberdade), ou que restrições lhes sejam impostas antes de uma sentença penal condenatória passada em segundo grau (até 2019) ou transitada em julgado (após 2019), salvo nos casos excepcionais das medidas cautelares penais especificadas na Lei 12.403/2011, que alterou o CPP, que discorre em “numerus clausus” quais são as ordens que um juiz – seja ele de 1º grau ou ministro do STF – pode decretar no curso de uma investigação (ou mesmo processo) criminal, como é o caso dos Inquérito que tramitam no STF sob os números 4.871 (das “Fake News”) e 4.828 (de “atos antidemocráticos”).
Ei-las:
a) comparecimento periódico perante o juiz;
b) proibição de manter contato com determinadas pessoas;
c) proibição de ausentar-se de determinada localidade ou do país;
d) recolhimento domiciliar após findo o trabalho;
e) afastamento temporário de função pública ou atividade econômica privada;
f) a fiança, nos casos admitidos por lei, a internação provisória em caso de inimputáveis nos crimes com grave ameaça e a monitoração eletrônica.
Mais nenhuma outra “medida cautelar penal” é possível no Brasil, salvo a mais grave delas (e somente se as anteriores não forem suficientes), que é a “prisão cautelar”, que pode se dar nas modalidades de “prisão temporária” (Lei 7.960/89) ou “preventiva” (próprio CPP), diferindo uma da outra pelo tempo de sua duração (5 dias prorrogável uma vez ou por prazo indeterminado, respectivamente) e a motivação para sua decretação, diferentes.
A fim de que se chegue aqui a uma rápida conclusão acerca da arbitrariedade inquestionável praticada pela última decisão do Sr. Ministro Alexandre de Moraes, relator de ambos os inquéritos, que manda empresas (terceiros) bloquearem perfis virtuais de investigados, é de se fazer uma outra observação fundamental: o que se lê, sem margem a qualquer dúvida de interpretação, no Art. 282, § 2º, do CPP, é que no caso de “investigação criminal” (inquérito), procedimento administrativo-penal que preconiza a ação judicial de persecução da pena, qualquer dessas medidas cautelares citadas acima só podem ser determinadas, literalmente, “por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público”.
Visto tudo isso e mesmo respeitando a recente decisão do Pleno do STF, por 10 a 1, na ADPF 572, que reconheceu a constitucionalidade do Inquérito instaurado de ofício pelo próprio órgão judiciário que o julga e é vítima ao mesmo tempo (Inq-STF 4.871), ainda assim, a uma, não poderia o ministro-relator (juiz natural da investigação) determinar “de ofício”, isto é, sem pedido da PF ou da PGR, qualquer medida de cautela penal.
A duas, não poderia impor uma medida cautelar diversa da prisão que não as mencionadas acima, decorrente do primado da lei, uma vez que não se lhe é dada liberdade de “inventar”, como juiz, medidas cautelares não previstas no Código de Processo Penal reformado pela Lei 12.403/11.
A três: todas as medidas cautelares penais possíveis são de “caráter pessoal”, ou seja, não podem ser impostas a terceiros, como foi feito contra o Facebook e o Twitter, por própria dicção legal e do Texto Constitucional que diz que “a pena não passará da pessoa do condenado”, conforme Art. 5º, XLV, 1ª Parte, da CF/88 (aplicando-se, aqui, analogamente, a mesma regra, com ainda mais razão, à figura do investigado).
Afora isso, qualquer tribunal, juiz ou autoridade brasileira, não têm poderes que excedam o território nacional sobre o qual a Constituição de 1988 impõe a soberania do Estado Brasileiro. Quando o faz, de modo impositivo e unilateral, este movimento é reconhecido, no Direito Internacional Público, como Guerra: e isso só acontece entre estados soberanos e mediante declaração do Chefe de Estado aprovada pelo Congresso Nacional (nos estados democráticos).
Contra “pessoas privadas” não há de ter qualquer eficácia jurídica, ainda que estas tenham sedes, sub sedes, filiais, sucursais ou até franquias e representações no território nacional, desde que não se trate de ato ou fato ocorrido no Brasil e cuja medida decretada possa ser cumprida também dentro do país.
A única possibilidade jurídica de cumprimento de ordem judicial dessa espécie em outro país é o “exequatur”, quando esta é remetida a cada país em que se pretende ver cumprida a decisão e o presidente do tribunal superior ou suprema corte competente, de acordo com o devido processo legal e o direito processual e material estrangeiro, do país de destino, “homologa” essa ordem, concedendo-lhe efeitos internos.
Diante disso, sem ingressar em qualquer polêmica política ou ideológica, tem-se que as medidas cautelares expedidas em ambos os inquéritos “inovadores” tocados pelo STF além de não guardarem previsão legal no Brasil, não têm o condão de obrigar a terceiros, que sejam, o Facebook eo Twitter, em investigações sigilosas contra pessoas físicas cidadãos brasileiros, muito menos de ter a “eficácia transnacional” pretendida. São decisões judiciais “natimortas”, nulas de pleno direito, inexequíveis e inexecutáveis, o que inclui, como efeito secundário, as tais multas impostas pelo descumprimento da referida “decisão judicial”, já que esta não tem validade ou valor jurídico algum, conforme explicado, nem no Direito Interno, nem no Direito Internacional.
Henrique Quintanilha - (Advogado (UFBA), Especialista em Direito do Estado, Mestrado – Direito Público e foi Professor da Faculdade de Direito da UFBA até 2013).
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