Samuel Hanan*
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, constitui-se em estado democrático de direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo político. É o que dispõe o artigo 1º da Constituição Federal de 1988. Nossa Carta Magna também preconiza, no parágrafo único desse artigo inicial, que todo o poder emana do povo e por ele é exercido por meio da eleição direta de seus representantes.
De
uma forma simplificada, o cidadão comum entende que o povo, através do
voto em eleições democráticas e livres, elege seus representantes para
em seu nome cobrar tributos da população e devolver o produto arrecadado
sob a forma de serviços essenciais, como saúde, educação, saneamento,
segurança pública, habitação e atenção social.
Já se passaram
35 anos da promulgação da Constituição Cidadã e, nesse período, o país
foi governado por oito presidentes da República, dos quais quatro
representantes dos maiores partidos políticos (PSDB, PT, MDB e PL) e com
diferentes perfis ideológicos. Cabe, agora, uma indagação. Os
presidentes que governaram o país a partir de 1988 cumpriram suas
obrigações expressas na Constituição?
A resposta, isenta, sem
qualquer viés político, ideológico, partidário ou de mera simpatia é
“não!”. Todos fracassaram. E é fácil comprovar essa assertiva. Na
educação, o Brasil ocupa hoje apenas a 66ª posição (entre as nações
avaliadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) por meio do Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes -PISA 2022). A grande maioria
dos nossos jovens não sabe interpretar textos nem resolver os mais
simples exercícios de matemática.
Na segurança pública o
quadro não é mais animador. Perdemos as guerras para as facções
criminosas, milícias, contraventores e outros agentes do crime, a ponto
de sermos considerados o 4º país mais violento ou inseguro do mundo, em
termos de segurança pública (física e patrimonial), registrando a
trágica estatística de 44 mil homicídios por ano.
Quando se
trata do maior bem da humanidade, a saúde, embora tenhamos o SUS, que
mesmo com limitações orçamentárias tem apresentado bons resultados, os
serviços prestados aos cidadãos estão muito aquém das necessidades
mínimas da população. São longas as filas para consultas, exames e
cirurgias especialidades, muitas vezes custando a vida de cidadãos
desesperados. Faltam hospitais, equipamentos e remédios.
Evoluímos
quase nada em matéria de saneamento básico e temos uma das piores
marcas dos governos dos últimos 35 anos. De acordo com o Censo 2022, 44%
da população brasileira ainda não tem acesso à coleta de esgoto. Em
2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já
constatava por meio da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) que
39,7% dos municípios brasileiros não dispõem de serviço de esgotamento
sanitário, condição com reflexo direto na saúde pública. Matéria
publicada no site Poder 360 em março de 2024, com base no Censo 2022,
revela que 49 milhões de brasileiros vivem em lares sem acesso a
saneamento básico. Isto significa que os dejetos de 24,3% da população
são depositados em fossos e valas ou seguem para rios, lagos, córregos
ou para o mar.
O direito à habitação, essencial para a
dignidade humana, também prevista no artigo 1º da CF/88, tornou-se letra
morta. O déficit habitacional ainda é enorme, apesar de programas
sociais que não dão conta de atender à demanda reprimida nem atendem a
todas as faixas da população.
O Índice de Retorno do Bem-Estar
Social (IRBES), indicador insuspeito, retrata perfeitamente a realidade
dos serviços essenciais ofertados aos brasileiros. Nele, o país ocupa a
última posição (30º lugar) entre as nações com maior carga tributária
no mundo. Ou seja, o Brasil cobra muito em impostos (14º lugar no
ranking mundial) e retribui pouquíssimo ao cidadão-contribuinte.
Vale
a pena destacar que nos últimos 35 anos o Brasil experimentou o aumento
de carga tributária bruta em 50% (1988: cerca de 22,5% do PIB e hoje
33,7% do PIB). Significa dizer que não se pode apontar como causa dos
fracassos das políticas públicas a falta de recursos financeiros, porque
esse argumento não se sustenta.
Não há mais tempo para
desculpas, mesmo porque aqueles que concorrem a cargos públicos se
comprometem a apresentar soluções. Já passou da hora, portanto, de o
Brasil reconhecer seus problemas – muitos antigos, recorrentes – e
buscar, de fato, caminhos para resolvê-los ou, ao menos, atenuá-los, sem
o que a população de todas as classes sociais e de todas as regiões do
país jamais terão uma vida digna. Eis os principais:
1 – Os
governantes são eleitos mediante muitas promessas, mas sem apresentar
nenhum plano de metas contendo as principais ações (com início meio e
fim de cada uma), custos e as origens dos recursos necessários à sua
efetivação. A divulgação de um plano durante o período eleitoral
ajudaria o eleitor a decidir seu voto e a fazer a cobrança posterior do
eleito, tornando mais úteis os vultosos recursos públicos gastos com as
eleições.
2 – Resiste a prática comum dos eleitos passarem os dois primeiros anos de seus governos - 50% do mandato – atribuindo culpa aos antecessores, reclamando da ‘herança maldita”. Com isso, apenas tentam justificar suas inações, enquanto a população espera inutilmente por soluções. Quando o cidadão elege o presidente da República, não está lhe dando uma carta branca para se limitar a atacar seus antecessores, mas sim um mandato para implantar um governo a favor do Brasil e de todos os brasileiros.
3 – É
preciso reduzir substancialmente os privilégios inaceitáveis usufruídos
pelos donos do poder, uma espécie de donatários das “capitanias
hereditárias” modernas do século XXI, que vêm drenando centenas de
bilhões de reais por ano.
4 – Fundamental também combater a
corrupção desenfreada que há décadas vem contaminando o serviço público,
desmoralizando as instituições e sugando um volume gigantesco de
recursos financeiros, calculado em mais de uma centena de bilhão de
reais. No ranking da percepção da corrupção, hoje o Brasil ocupa a 104ª
posição entre 180 países, o que significa dizer que há 103 país com
setor público mais honesto que o brasileiro. Uma vergonha nacional e
péssimo exemplo para as novas gerações.
A Operação Lava-Jato é
um exemplo do tamanho da corrupção no Brasil. O Supremo Tribunal
Federal (STF) anulou grande parte das condenações dos envolvidos, mas
não inocentou os ex-condenados nem concluiu pela inexistência da
corrupção. A reviravolta ocorreu por irregularidades ou ilegalidades
processuais. É urgente alterar a legislação, tornando imprescritíveis os
crimes praticados contra a administração pública para dar uma resposta
efetiva à sociedade e mostrar, especialmente aos mais jovens, que o
crime não compensa e a corrupção não é meio de vida!
É sempre bom recordar Louis Brandeis,
ex-juiz da Suprema Corte norte-americana, segundo o qual “a luz do sol é
o melhor desinfetante”. Portanto, transparência total em todas as ações
é sempre recomendável.
Cabe ainda relembrar o pensamento do
filósofo italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527), cujo alerta continua
oportuno: “Um povo que aceita passivamente a corrupção e os corruptos
não merece a liberdade. merece a escravidão. Um país cujas leis são
lenientes e beneficiam bandidos, não tem vocação para liberdade. Seu
povo é escravo por natureza. Uma pátria, onde receber dinheiro mal
havido a qualquer título é algo normal, não é uma pátria, pois neste
lugar não há patriotismo, apenas interesses e aparências.”
5 –
Reconhecer que o país tem sido incapaz de cumprir o artigo 3º da
Constituição que, com clareza absoluta, dispõe que dentre os objetivos
fundamentais da República Federativa destacam-se: a constituição de uma
sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como o
artigo 5ª, cujo caput traz a assertiva que todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza. É possível alguém acreditar que
no Brasil todos são iguais perante a lei? Temos de fato uma sociedade
livre, justa e solidária ou uma sociedade injusta com liberdade
relativa, diferenciada e completamente egoísta?
Nos últimos 35
anos, não avançamos na redução dos enormes fossos econômicos entre as
regiões do país. Já não é mais aceitável o desequilíbrio
desenvolvimentista existente no país. O maior exemplo está nas regiões
norte, nordeste e centro-oeste, que apesar de reunirem 19 estados e o
Distrito Federal, com mais de 82,4% da área territorial do país e serem
habitadas por cerca de 45,6% da população brasileira, têm participação
de apenas pouco mais de 29% do PIB. Por outro lado, o estado de São
Paulo, ocupando apenas 2,9% da área territorial brasileira e com
população inferior à metade da habitada nas três regiões menos
desenvolvidas do país, produz sozinho cerca de 31,5% do PIB, isto é,
mais de 10% do registrado pelos 19 estados e Distrito Federal. Além
disso, nos estados do norte, nordeste e centro-oeste, a renda média per
capita é inferior à metade da renda nacional. O Brasil está condenando
cidadãos à segunda classe pelo critério de onde vivem. Para piorar, as
disparidades sociais seguem gigantes, com 1% população mais rica detendo
48% da riqueza nacional.
O fracasso dos governos dos últimos
35 anos, portanto, é evidente. Nesse período, dos oito presidentes
eleitos dois sofreram impeachment, um foi condenado e preso após deixar o
cargo e posteriormente teve sua condenação anulada, um foi detido
depois do mandato e um teve enormes dificuldades para governar diante da
pressão interna. O quadro hoje é de um país dividido. A questão
política, entretanto, não serve para isentar nenhum deles de suas
responsabilidades enquanto estiveram no cargo mais importante do país.
Os
objetivos fundamentais da República, elencados no inciso III, do artigo
3º da Constituição Federal, estão longe de serem alcançados. Quem sofre
as consequências disso é a população, notadamente a mais pobre.
O
país reclama – e não é de hoje – um governo a favor do Brasil, com os
cidadãos enxergados como prioridade absoluta o tempo todo.
**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br
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