Publicada
pela editora Patuá, a obra transforma experiências pessoais traumáticas
em versos corajosos que denunciam o impacto do machismo e da misoginia
“Sem omitir crueldades e enterrando vingança
em nome do maior de todos os sentimento – o Amor –
a poeta Mila Nascimento, neste ‘Poemas para antes do
banho,
durante o café e depois do abandono, encontrou a forma de fazer de sua
poesia, arma contra os modos de violências seculares que atravessam os
corpos e as sentimentalidades das mulheres.”
Airton Souza, escritor e historiador paraense, no prefácio da obra
“Poemas para antes do banho, durante o café e depois do abandono”, segundo livro da médica e escritora paulistana Mila Nascimento (@srta_mila_nascimento),
aborda, sob a ótica do cotidiano, o processo de (re)construção da
subjetividade de um eu-lírico feminino violentado. Publicada pela
editora Patuá (61 pág.), a coletânea de poemas conta com o prefácio
assinado pelo premiado escritor e historiador paraense Airton Souza, que
venceu o Prêmio SESC de Literatura em 2023.
A
poeta expõe, a partir da primeira pessoa, angústias, experiências,
dores e desejos de uma subjetividade violada pelo machismo e pela
misoginia. E, ao fazer isso, vai muito além da catarse da retomada da
própria voz, alcançando um tom coletivo e político que aproxima o “eu”
de um “nós” composto por mulheres que vivem, viveram ou sabem de alguém
que viveu experiências parecidas com as da autora, uma sobrevivente de
violência doméstica grave. Mila acredita que as pessoas querem ler o que
elas são e sentem. Segundo ela, “nessa partilha a gente vai construindo
uma roda imensa de afetos” e sua escrita, especialmente neste livro,
vai ao encontro disso.
Composto
por trinta e um poemas viscerais, a obra também aborda a importância da
arte na vida de uma pessoa. Além dos afetos, memórias e sonhos, a
poesia e os livros existem ali como um apoio e um meio do eu-lírico se
conectar aos outros e também consigo mesmo, tornando metalinguagem o
compartilhamento de experiências tão profundas. Nesse sentido, colabora o
poema “sobre o teatro da Denise” (pág. 40): “a arte transmuta as coisas
/ todas de fora / da rua / e dentro da gente / tornando todo mundo / um
bocado mais contente”.
No
prefácio, Airton Souza comenta sobre o jogo quase semiótico e também
sinestésico que a poeta traz em seu livro. É pelo ritmo, que lembra o da
fala, e pela linguagem, que explora cheiros, sabores e luzes presentes
no dia a dia, que Mila consegue romper o silêncio e o silenciamento que
rondam a vida das mulheres desde o nascimento e, ao mesmo tempo,
envolver o leitor. Como a própria sinopse da obra destaca: “É como se
estivéssemos sentados em sua sala de estar, sentindo o cheiro do bolo no
forno ou do incenso queimando à meia luz.”
Se
culturalmente existe uma expectativa de que a casa, a intimidade e o
corpo guardem tudo, Mila subverte isso e, assim, consegue fazer ecoar
sua voz e a voz de muitas outras. A sobrecarga da maternidade solo, o
corpo desejante e a retomada da autonomia são alguns dos temas
trabalhados na obra que, como o título sugere, desconstroi a
naturalização das violências à qual as mulheres estão sujeitas pelo
simples fato de serem mulheres.
O
livro de Mila nos mostra o processo de plurissignificação da linguagem e
nos apresenta a escrita como mecanismo de denúncia, cura e catarse. E a
autora afirma: “Encontro na escrita colo, aceitação, força e afeto. Não enlouqueci graças ao ato de escrever”. E
esse aspecto foi bem realçado quando no prefácio Airton diz que ela
“consegue, quase sem forçar, emergir". “Respirar fundo. Recolher os
últimos centímetros de sentimentos pela vida. Tirar com a ponta das
unhas as fuligens de dentro das retinas. Sentir, pluralmente, o seu e a
multidão de outros corpos de mulheres”, analisa o escritor.
Mila e Camila, a médica e a escrevedora, as duas faces de uma mulher que se encontrou na escrita
Camila
do Nascimento Leite, nome de batismo da escritora Mila Nascimento,
nasceu em março de 1979, em São Paulo, mas mora em Campinas (SP) e atua
como médica endocrinologista, sexóloga e emergencista, além de dedicar
parte do seu tempo para cuidar voluntariamente de pessoas em situação de
vulnerabilidade social.
Também
é autora do livro "Poemas Paridos de Cócoras - porque assim dói menos"
(Minimalismos, 2023), além de ter publicado em blogs e revistas
literárias como Jirau de Histórias, Revista Artes do Multiverso, Barda
Literária, Poesia na Alma, Alpendre Literário, A Casa Inventada, Contos
de Samsara e Revista TAUP, da editora Toma aí um poema.
Escreve
desde a infância por estímulo da professora de português Eunice, mas
foi em 2022, que sua escrita foi reconhecida, após ter sido premiada na
Categoria Poesia Nacional no 57º FEMUP, o Festival de Música, Conto e
Poesia de Paranavaí (PR).
Sua
motivação para ser escritora veio do efeito das palavras no processo de
reencontro com si mesma e em como o que ela cria reverbera: “O meu
avesso de dor veio à tona em forma de poesia que tocou o coração de
amigos, pacientes e tantas mulheres que dizem ser representadas pelo que
eu escrevia.” E completa: “Escrevo sobre o que me dói, pois quando
entrego ao mundo, compartilho a dor e isso transforma tanto a mim,
quanto ao outro.”
Confira trecho de poema do livro:
“e a gente segue sendo forte
do jeito que aprendemos
vida sangrando, quase morte
esperando e lutando por dias melhores”
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