Este filme é mais um caso de como o funcionalismo pode empobrecer não apenas obras, mas nosso olhar. Lygia Maria para a FSP:
"Um
livro não é moral ou imoral. É bem ou mal escrito. Eis tudo", disse
Oscar Wilde. A frase exalta uma postura crítica ao funcionalismo, tanto
na produção quanto na recepção das obras. Quando o artista cria com a
intenção de cumprir um papel social ou político, ou quando o público
foca na busca por mensagens desse tipo, a tendência é que se caia no
didatismo e no esvaziamento da estética —que, no reino das artes, é a
rainha. É importante que a função não subjugue a forma. Caso contrário,
teremos um panfleto, não uma obra de arte.
O
mesmo vale para o cinema. Nas últimas edições do Oscar, por exemplo,
não sabemos mais se os filmes são premiados pela qualidade técnica ou
somente pelas lutas sociais que representam. Muitas críticas colocam
aspectos formais em segundo plano e ressaltam análises sociológicas.
O
público, através das redes sociais, e a imprensa se retroalimentam com
opiniões baseadas em discursos ideológicos. Assim foi com o recente
"Barbie", filme sobre uma boneca, e "Coringa", sobre um vilão de
história em quadrinhos. No Brasil, "Bacurau" passou pelo mesmo fenômeno,
exaltado pela esquerda.
Com "O Som da Liberdade"
não é diferente, até pela intensa campanha de marketing que inclui
distribuição de ingressos gratuitos. O filme foi relacionado à teoria
conspiratória do grupo de direita radical QAnon,
segundo a qual haveria uma rede internacional de pedofilia comandada
por empresários e políticos poderosos. Ademais, a película é produzia
por Mel Gibson e protagonizada por Jim Caviezel, figuras de Hollywood
ligadas ao conservadorismo.
Contudo,
quem visse o filme sem ter conhecimento dessas informações encontraria
ali elementos rarefeitos da extrema-direita. Seria um filme banal sobre
um policial que tenta desmantelar uma rede de tráfico de crianças na
Colômbia e salvar uma garotinha sequestrada.
A
narrativa é clássica, com heróis, vilões, obstáculos e um final feliz
que se conecta de forma didática ao começo e ao título do filme. A
trilha sonora sentimentaloide é usada abusivamente e algumas atuações
são canastronas, como a de Caviezel, que sempre tem uma lágrima
solitária escorrendo pela bocheca a nos lembrar que o tema é mesmo
triste. Sem o marketing e o apoio de evangélicos e bolsonaristas, seria ignorado.
Há
alguns sinais de direita encontrados por críticas e público. A
referência a Deus (no caso, apenas três) é um deles. Mas, considerando
que a maioria da população mundial é religiosa e que o apelo à divindade
em momentos de dor é comum, a referência cristã numa história sobre
crianças sequestradas que sofrem violência sexual não causa espanto.
Outro
sinal seria representar guerrilheiros comunistas de forma negativa.
Ora, se grupos como as Farc e a ELN foram responsáveis por violência e
sequestros nas últimas décadas, como a da jornalista espanhola Salud
Hernández-Mora e da ex-candidata à presidência da Colômbia Ingrid
Betancourt, estranho seria mostrá-los de outro modo.
"O
Som da Liberdade" é mais um exemplo de como o funcionalismo pode
empobrecer não apenas obras, mas nosso olhar estético e, com ele,
potencialidades tão humanas como a fantasia e a imaginação. A
polarização política nos desumaniza.
Por
fim, não se pode deixar de notar a hipocrisia. Durante os créditos, Jim
Caviezel explica, com números inflados e tom alarmista, que o filme tem
uma missão, a de acabar com o tráfico sexual de crianças. "Os filhos de
Deus não estão à venda", diz. Curioso que produções sobre o abuso de
milhares de crianças há décadas em igrejas e colégios católicos de todo o
mundo —como o filme "Spotlight: Segredos Revelados" (2016) e a série "The Keepers" (2017)— não provoquem a mesma comoção no mesmo público. Nesse caso, há apenas o som do silêncio.
Postado há 1st October por Orlando Tambosi
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