MEDIÇÃO DE TERRA

MEDIÇÃO DE TERRA
MEDIÇÃO DE TERRAS

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Risério não tem medo de cara feia

 



O antropólogo Antonio Risério, cuja cabeça foi pedida pelo identitarismo racialista, escreve um texto "fim de papo" em em seu Facebook (a propósito da ultrapassada noção de "raça", sempre lembro outro baiano, João Ubaldo: quem tem raça é cachorro):


Não há conversa possível com sacerdotes e fiéis da novel religião identitária. A elite letrada neonegra mal acaba de rabiscar suas “teses” altamente discutíveis e logo as converte em dogmas irretocáveis. Exigem imunidade ao questionamento, foro privilegiado da ideologia. Ou seja: não escrevem textos, mas tábuas da lei. Se alguém discorda, é racista.

A tríade identitária em vigor é esta: xingar, intimidar, silenciar. Discutir, incrementar o debate público, de modo algum. Para quem é dono da verdade, discussão alguma interessa. É pedra no caminho da realização da suposta felicidade social. Mas, feliz ou infelizmente, nem todos pensamos a mesma coisa, nem rezamos pela mesma cartilha. Logo ao primeiro ataque desferido, avisei: não esperem de mim o papelão de Lilia Beyoncé Schwarcz, branquinha cheia de culpa, suplicando perdão.

E a primeira coisa que vi: regra geral, quem atacava, simplesmente não tinha lido o que escrevi. Basta dizer que todos deram de barato que eu tinha escrito sobre essa bobagem de “racismo reverso”. Até a eterna presidenciável Marina Silva, a menos que, além de costumar se equivocar na interpretação do Brasil, esteja agora também com problemas de interpretação de texto. Não, Marina não leu, mas tuitou categórica sobre o assunto, com aquela típica soberba que tantas vezes se oculta sob o manto da humildade cristã. Mas não é a única a não querer contrariar neonegros. Com a preocupação de manter ou ampliar seu raio de ação, diante das eleições deste ano, partidos “progressistas” evitam qualquer debate. Querem quadros – e votos. Nossos partidos “soi disant” de esquerda, hoje, estão muito mais para o Magazine Luíza do que para Leonel Brizola – esta é a verdade.

Mas vejamos a tríade sagrada do racialismo. Em “O Emplastro Estrutural”, o escritor Gustavo Nogy (além de dizer que cometi uma indiscrição imperdoável para o debate público: ter debatido publicamente) foi a um dos pontos: “...suspeitar de uma das elaborações possíveis sobre o racismo – o que é o ‘racismo estrutural’ senão uma das elaborações possíveis sobre o racismo? – não é suspeitar da realidade do racismo, assim como questionar a validade epistêmica de uma teoria econômica sobre a pobreza não é pôr em dúvida a realidade da pobreza ou a fome dos pobres”. O fundamentalismo fascista quer nos obrigar a crer que sim, mas o fato é que afirmei a realidade do racismo de uma ponta a outra do artigo que publiquei.

Lembro, ainda, que não é de hoje que movimentos negros tentam provar que “todo mundo” é racista. Muito pelo contrário. O historiador (negro) Joel Rufino já falava disso há tempos, em “Atrás do Muro da Noite”. Dizia que a “frustração social” estava na base da movimentação, imprimindo-lhe uma marca: “os movimentos negros trabalham politicamente o ressentimento... há como que uma ânsia em arrancar do brasileiro comum a confissão de que este é racista”. A novidade, daí para cá, é que passaram a atacar de manada. E vingou a praxe da incultura do cancelamento – que vem de um traço fundamental do identitarismo: a intelectofobia. Camille Paglia, num dos textos de Sex, Gender, Feminism, já teclava: “...as universidades, como a grande mídia, estão patrulhadas atualmente por uma bem intencionada, mas implacável polícia do pensamento, tão dogmática quanto os agentes da Inquisição espanhola. Estamos novamente mergulhados num caos ético onde a intolerância se fantasia de tolerância e onde a liberdade individual é esmagada pela tirania do grupo”.

Exigiram, também, que eu desse exemplos de racismo antibranco de pretos brasileiros. Não faltam. Racismo contra brancos e mestiços. Posso fazer uma lista imensa, vindo, por exemplo, do grupo carnavalesco Ilê Aiyê proibindo ingresso de não-pretos no bloco (em 1974) à recente faixa em defesa da pureza racial exibida na Avenida Paulista (“miscigenação é genocídio”), passando pelos tribunais raciais que hoje infestam nosso sistema educacional, cancelando matrículas de mestiços. Os “pardos”, para o movimento negro, não passam de massa de manobra. São “incluídos”, sempre que interessa inflar o “contingente negro” da população – e “excluídos”, quando o “privilégio preto” é ameaçado.

Anos atrás, por sinal, em “Genocídio Racial Estatístico”, o historiador José Murilo de Carvalho já tocava no grão da questão: “Está em andamento no Brasil uma tentativa de genocídio racial perpetrado com a arma da estatística. A campanha é liderada por ativistas do movimento negro, sociólogos, economistas, demógrafos, organizações não-governamentais, órgãos federais de pesquisa. A tática é muito simples. O IBGE decidiu desde 1940 que o Brasil se divide racialmente em pretos, brancos, pardos, amarelos e indígenas. Os genocidas somam pretos e pardos e decretam que todos são negros, afro-descendentes. Pronto. De uma penada, ou de uma somada, excluem do mapa demográfico brasileiro toda a população descendente de indígenas, todos os caboclos e curibocas. Escravizada e vitimada por práticas genocidas nas mãos de portugueses e bandeirantes, a população indígena é objeto de um segundo genocídio, agora estatístico”.

Quando toco em tais tópicos, costumam me responder dizendo que não entendo que raça é uma “construção social”. Bem, duas coisas. Primeiro: não penso em termos de “raça” – como brasileiro, penso em termos de cor. Segundo, expliquem a um pobre mortal como, desde a invenção da linguagem, poderia existir alguma coisa que não fosse “construção social”? Nada escapa disso, como já ensinavam os neokantianos. Não por acaso esse “construcionismo social” é ridicularizado hoje, mundialmente, por tantos estudiosos e intelectuais, como agora a socióloga Nathalie Heinich, da diretoria do Centro Nacional da Pesquisa Científica (França), adversária do “militantismo acadêmico” identitário, que, no seu entender, descende do período stalinista da “ciência proletária” e dos “delírios maoístas” da década de 1970.

“Racismo estrutural”, sim, mas com o baronato negro ocupando cadeira cativa nos espaços e horários nobres do país. Com o patrocínio de grande parte do empresariado. Do “woke capitalism”. E apontando para um tremendo quiprocó jurídico no caminho. Porque seu desfecho seria, logicamente, a criação de um código penal para cada “raça”. Claro. A “tese” dessa malandragem jurídico-ideológica é a seguinte. O racismo não acontece em plano individual – vem de um sistema de poder, de uma estrutura social. Como preto é oprimido e não conta com a estrutura a seu favor, está simplesmente impossibilitado de ser racista (é dessa esperteza que vem a conversa de “racismo reverso”). Ou seja: preto pode ser racista à vontade, porque só depois que for derrubada a estrutura capitalista é que poderá ser responsabilizado pelos crimes que cometer... Para defender essa tolice, essa abstração confortável, nossos militantes são obviamente acadêmicos. Querem dar cientificidade à jogada. Mas ninguém precisa contar com um aparelho estatal para ser racista. Uma gangue que impõe seu poder numa favela é ilusão de ótica só porque não traz com ela o aparelho de Estado, a “estrutura”, etc.? Aliás, todas essas definiçõezinhas de manuais acadêmicos pouco se sustentam na realidade. Acho hilário quando leio num desses manuais que o Estado detém o monopólio da coerção organizada, por exemplo. Porque o narcotráfico arquivou essa “definição” há tempos.

Joel Pinheiro ridicularizou: “O racismo englobaria o nosso sistema social como um todo, constituído de uma história escravocrata e erigido numa estrutura hierárquica que coloca um grupo racial acima de outro e tem meios para perpetuar essa sujeição. Apenas atos em que essa ordem se reafirma seriam propriamente racistas. [...] Imagine que alguns estudiosos da violência propusessem restringir o termo ‘assassinato’ apenas aos casos em que o matador fosse hierarquicamente superior à vítima. Se um patrão matasse seu empregado, aí sim teríamos um assassinato. Mas se um vizinho matasse o outro, aí não, teríamos outra coisa, uma ‘morte violenta premeditada’. Páginas e páginas de discussão acadêmica seriam gastas para discutir quais casos seriam ou não seriam ‘assassinato’. Mas a realidade dos crimes continuaria a mesma”.

No entanto, na cartilha do “racismo estrutural”, se o mesmíssimo crime for cometido por um branco e um preto, o branco terá cometido o crime – o preto, não. E aí? Teremos dois códigos penais? Ora, racismo é racismo. Venha de quem vier, de onde vier e quando vier. Mas, como o espaço é curto, encerro. Lembrando que, pelo que disse aqui e por muito mais, quando falam para eu não me incomodar com os ataques porque “os cães ladram e a caravana passa”, respondo que não me incomodo com ataques. Mas vejo o ditado de outra perspectiva. É a caravana identitária que passa, incensada e acolhida pelo capitalismo internacional e por segmentos significativos da classe dominante brasileira. Quem ladra, no caso, sou eu. E aqui me lembro do velho Manoel da Nóbrega, escrevendo em meados do século 16, numa de suas Cartas do Brasil: podem ficar sossegados: “eu ladrarei quanto puder”.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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