A pesquisadora Irene Mia, do IISS, identificou que uma guinada geopolítica e econômica da América Latina em direção à China já está em andamento. A influência de Pequim se baseia no comércio e no investimento e financiamento de grandes projetos de infraestrutura em diversos países - incluindo o Brasil. Luis Kawaguti para a Gazeta do Povo:
A
ascendência de governos de esquerda em países como Peru, Chile e
Honduras - e eventualmente Brasil e Colômbia em 2022 ou 2023 - podem
facilitar o aumento da influência geopolítica e econômica da China na
América Latina, processo que já está em andamento. A conclusão é de um
estudo recente do britânico Instituto Internacional de Estudos
Estratégicos (IISS).
O
relatório elenca desafios estratégicos do mundo em 2022. Ele também
cita a tensão entre a Rússia e o Ocidente no leste europeu, a questão
nuclear do Irã e a crise política interna nos Estados Unidos.
A
pesquisadora Irene Mia, do IISS, identificou que uma guinada
geopolítica e econômica da América Latina em direção à China já está em
andamento. A influência de Pequim se baseia no comércio e no
investimento e financiamento de grandes projetos de infraestrutura em
diversos países - incluindo o Brasil.
Seu
principal projeto econômico internacional para aumentar a influência - e
provocar dependência econômica, segundo analistas ocidentais - é a
iniciativa Belt and Road (BRI, na sigla em inglês), também conhecida
como Nova Roda da Seda da China, iniciada em 2013.
Nela,
Pequim faz investimentos vultosos em projetos de infraestrutura,
telecomunicações e tecnologia digital em cerca de 60 países, a maioria
deles na África e no Oriente Médio. Mas a Rota da Seda já chegou à
América Latina (Bolívia, Peru, Equador, Chile, Uruguai, Venezuela,
Guiana e Suriname). O investimento total do projeto mundialmente passa
de US$ 200 bilhões (R$ 1,1 trilhão).
Os
Estados Unidos criaram no ano passado um projeto para fazer frente à
Nova Rota da Seda chamada Built Back Better World (em inglês:
Reconstruir um Mundo Melhor, também conhecida pela sigla B3W). Ela deve
ser difundida na 9ª Cúpula das Américas, que tentará reunir os líderes
do continente em junho, na Califórnia.
A
iniciativa americana é um dos aspectos da guerra comercial travada
entre Washington e Pequim desde 2018, quando ocorreram taxações mútuas
de produtos importados e sanções americanas. Essa tensão escalou para a
área militar, com um esforço do governo do ditador Xi Jinping para
superar a hegemonia bélica americana nas próximas décadas.
Porém,
a B3W dos EUA deve trazer não só recursos para o continente, mas uma
carga política que pressupõe comprometimento com valores da democracia
liberal americana. Entre eles estão direitos humanos, democracia, luta
contra mudanças climáticas, segurança na saúde, tecnologia digital e
igualdade de gênero - além da ideologia da intervenção limitada do
Estado na vida dos cidadãos.
A
iniciativa chinesa, por sua vez, vem carregada de uma propaganda
segundo a qual Pequim não interfere na política ou na ideologia de seus
parceiros comerciais. De fato, a China não impôs o regime comunista por
armas ou pressão diplomática a nenhum país (diferentemente dos Estados
Unidos em relação a eleições, por exemplo). A China também não critica
abertamente sistemas de governo de seus parceiros comerciais (o país não
tem aliados formais, exceto pela Coreia do Norte).
Mas
isso não quer dizer que a influência chinesa seja puramente econômica,
sem carga ideológica. Pequim espera apoio, ao menos diplomático, em
questões chave, como a política de “Uma China”. Isso significa entender
que Taiwan é uma província chinesa dissidente e não um território
autônomo e democrático. Ou seja, para negociar com Pequim, é preciso não
reconhecer Taipei - o que tem provocado o isolamento político da ilha.
O
exemplo mais recente é o da Nicarágua. Depois de receber sanções
americanas, o esquerdista Daniel Ortega rompeu relações com Taiwan em
dezembro do ano passado, aderindo à política “Uma China”. Logo em
seguida, se tornou elegível para receber recursos da Nova Rota da Seda.
Outro
pré-requisito para manter uma boa relação diplomática com o governo de
Xi Jinping é fazer vista grossa às acusações de abusos de direitos
humanos da China contra a minoria uigur (muçulmana) na região de
Xinjiang. Naquela área, os uigures são mandados para campos de trabalhos
forçados que Pequim chama de centros de “reeducação”.
Essas
são as agendas chinesas mais evidentes. Mas analistas ocidentais se
preocupam com questões ideológicas mais profundas. Elizabeth Economy,
pesquisadora da Universidade de Stanford, escreveu no ensaio “A nova
ordem mundial de Xi Jinping” que os investimentos chineses em países em
desenvolvimento vêm acompanhados de tentativas nos bastidores de
difundir valores. Entre eles estão o aumento dos poderes do Estado, a
diminuição de liberdades individuais e a restrição de mercados abertos.
Na
Tanzânia, por exemplo, o governo passou a adotar práticas do modelo
chinês de controle da internet e das mídias sociais. Partidos políticos
na Etiópia, Sudão e África do Sul participaram de treinamentos sobre a
estrutura do Partido Comunista Chinês e de seu sistema de propaganda. Na
África do Sul, canais de notícias chineses começaram a rivalizar com a
mídia local.
No
fim do ano passado, o presidente de esquerda mexicano Andrés Manuel
López Obrador ocupava a presidência rotativa da Comunidade de Estados
Latino-americanos e Caribenhos (Celac), criada pelo ex-ditador
venezuelano Hugo Chávez.
Obrador
assinou em seus últimos dias de mandato o Plano de Ação Conjunto
China-Celac. Se for implementado pela Argentina, também governada pela
esquerda e que agora ocupa a presidência da Celac, o plano deve
aproximar os países latino-americanos em reuniões de alto nível para
compartilhar a troca de experiências de governo.
E
partidos brasileiros têm participado dessa articulação. Entre novembro e
dezembro, políticos do PT, PSB, PDT e PC do B participaram do 3º Fórum
entre o Partido Comunista da China e os Partidos Políticos da América
Latina e do Caribe. De forma virtual, alguns desses políticos
discursaram elogiando as conquistas do povo chinês sob a liderança do
Partido Comunista Chinês.
A batalha pelo 5G
O
Brasil já foi citado por muitos analistas internacionais como um país
“pêndulo” - ora mais ligado aos interesses americanos, ora propenso a
negociar com nações rivais do Ocidente.
Uma
das principais agendas de disputa entre Washington e Pequim no Brasil é
o bilionário mercado de internet 5G. Os americanos pressionaram para
que a empresa chinesa Huawei fosse excluída do leilão no ano passado. A
Casa Branca ofereceu que o Brasil fosse elevado a aliado global da Otan
(aliança militar ocidental), condição em que poderia ter acesso a
avançadas armas americanas e vender seus produtos de defesa com maior
facilidade.
O
principal argumento americano contra a China era a insegurança dos
equipamentos da Huawei. Eles poderiam ser usados para fins de
espionagem, segundo os Estados Unidos. Isso porque a lei chinesa permite
que o governo central solicite informações estratégicas para empresas
privadas do país. Pequim sempre negou que essa possibilidade seja
colocada em prática.
Mas
o Brasil a princípio adotou uma solução intermediária. Estabeleceu que o
leilão seria destinado apenas a operadoras de telefonia, o que excluiu a
Huawei. Por outro lado, não impediu que a empresa forneça equipamentos
para as operadoras que ganharam as concessões.
O
governo brasileiro também determinou que seja criada uma rede 5G
exclusiva para órgãos governamentais, que não pode utilizar equipamentos
chineses.
Essa
foi a solução diplomática. Mas segundo uma fonte do Planalto, o governo
de Jair Bolsonaro sabe que não pode excluir a China da implantação do
5G no Brasil. Isso porque grande parte da estrutura de internet 4G do
país já se baseia em equipamentos da Huawei. Banir a empresa
significaria começar tudo da estaca zero, gerando custos mais elevados e
atrasos.
Mas
isso não significa que o governo brasileiro esteja minimizando a
possibilidade da rede ser usada para ações de inteligência,
monitoramento de dados em massa ou furto de segredos e tecnologias por
parte de Pequim. Muito pelo contrário, essa é uma grande preocupação dos
órgãos de inteligência brasileiros.
Investimentos chineses no Brasil
A
China investiu no Brasil US$ 66 bilhões (R$ 360 bilhões) em 176
empreendimentos entre 2007 e 2020, segundo relatório do Conselho
Empresarial Brasil-China.
Desse
montante, 48% foi destinado ao setor de energia elétrica, 28% para
petróleo e gás, 7% para extração de minerais metálicos, 6% em indústria
manufatureira, 5% para obras de infraestrutura e 3% para agronegócio,
sendo o restante para outros segmentos.
Outros US$ 44 bilhões (R$ 240 bilhões) foram destinados a 64 projetos que não foram concretizados.
Problemas da Rota da Seda
Oficialmente, porém, o Brasil não faz parte da Nova Rota da Seda.
Mas
os investimentos chineses não têm apenas uma parte positiva. Analistas
levantaram alguns aspectos da BRI que podem ser entendidos como
problemáticos. O primeiro é em relação ao modelo da operação, pois tudo
vem da China: financiamento, trabalhadores e materiais. Não há processos
de avaliação de riscos financeiros ou de transparência e licitação.
Impactos no meio ambiente e em comunidades locais não costumam entrar na
conta.
Até
aí um segmento da população pode não se importar. Mas um estudo de 2018
publicado na revista Foreign Affairs mostrou que 270 de 1.814 projetos
da Rota da Seda realizados entre 2013 e 2018 tiveram problemas de
governança corporativa (gestão).
Isso
deu margem a corrupção, níveis de dívida mais elevados que os
recomendados pelo mercado, poluição ambiental e abusos de natureza
trabalhista.
Esse
tipo de problemas, associados a um cenário de governos acusados por
práticas de corrupção na América Latina, pode gerar uma mistura
explosiva, segundo analistas.
Fora
da iniciativa BRI, a expansão chinesa na América Latina tem ainda um
aspecto que preocupa analistas e setores de inteligência brasileiros: o
uso de áreas privadas compradas pela China para atividades militares.
O
exemplo mais clássico é a instalação de uma base científica na
província argentina de Neuquén em 2016. Ela é parte do Programa Nacional
da China de Exploração da Lua e Marte, mas analistas afirmam que em
teoria pode ser usada para controlar satélites militares. A preocupação é
que o país hospedeiro, em tese, não sabe de tudo que acontece dentro da
instalação. A Argentina nega.
E de que lado o Brasil vai ficar nessa disputa entre EUA e China por influência na América Latina?
Além
dos investimentos, a parceria comercial entre Brasil e China não pode
ser desprezada. Para se ter uma ideia, em 2021, a China contribuiu com
US$ 40 bilhões (R$ 218 bilhões) dos US$ 61,2 bilhões (R$ 334 bilhões) do
superávit da balança comercial brasileira. Ela é o hoje o principal
parceiro comercial do Brasil, segundo dados do Icomex, boletim do
comércio exterior ligado à Fundação Getúlio Vargas.
Se
por um lado isso ajuda consideravelmente o desenvolvimento brasileiro,
também torna o país suscetível a pressões diplomáticas e imposições de
barreiras comerciais por motivação política. A diplomacia chinesa ganhou
fama mundial de predatória ao jogar politicamente com vários países
usando como arma a exportação de produtos médicos e vacinas muito
necessários durante o auge da pandemia.
Na
relação com os Estados Unidos, o Brasil importa mais do que exporta e o
déficit em 2021 foi de US$ 8,3 bilhões (R$ 45 bilhões). O governo ainda
pretende conseguir o status de aliado global da Otan por meio da
diplomacia. Mas uma eventual aproximação com a Rússia em uma viagem
presidencial marcada para o início deste ano pode tornar o processo mais
difícil.
Por
ora, a posição do governo Bolsonaro é não adotar um alinhamento
automático com os EUA, nem se aproximar mais da China. A ideia é adotar
uma posição pragmática que traga benefícios para os interesses do
Brasil, segundo uma fonte do Planalto. Mas se um governo de esquerda
assumir a presidência no ano que vem, essa situação pode mudar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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