O arcanjo é muito loiro e o demônio que ele vence muito escuro, dizem
receptores de uma condecoração do século XIX dada pela rainha. Vilma Gryzinski:
Não é qualquer um que esmaga a cabeça do príncipe das trevas sob seus pés, numa representação clássica do Bem vencendo o Mal.
A representação figura na Ordem de São Miguel e São Jorge, uma
honraria dada, quando foi criada, a militares britânicos no
Mediterrâneo.
Daí os dois santos guerreiros. Com o tempo, passou a contemplar embaixadores e personalidades com atuação no exterior.
A atriz Angelina Jolie foi uma delas, por sua campanha algo ambiciosa
de acabar com o estupro como arma de guerra. O nobre objetivo ainda não
foi alcançado, infelizmente.
O revisionismo histórico que grassa nos Estados Unidos e na Inglaterra chegou rapidamente a São Miguel.
Um branco (o arcanjo) pisando num negro (o coisa ruim) evoca a
estremecedora cena de George Floyd sendo sufocado sob o joelho do
policial Derek Chauvin.
Atenção: o Satã negro já havia sido substituído em 2011 por um mais claro, mas não atendeu o surto politicamente correto.
O governador-geral da Jamaica, um posto honorífico para marcar sua
integração na Comunidade das Nações (o império britânico depois de
deixar de ser império), já tinha tomado a posição pública de não usar
mais a honraria, recebida em 2009 na tradicional cerimônia em que a
rainha Elizabeth tocou seu ombro com uma espada.
“Atendendo a manifestações de preocupação de cidadãos com a imagem na
medalha e a rejeição global ao uso de objetos que normalizem a
degradação de pessoas de cor”, justificou Patrick Allen.
Adianta dizer que é o maligno príncipe das trevas, não uma pessoa?
Claro que não. Michael Palin, o ex-Monthy Python, o legendário e
iconoclasta grupo de humoristas, recebeu a versão nova e embranquecida
da condecoração, mas só de saber como era a encarnação anterior já a
torna “imprópria e ofensiva”, avisou.
Dezesseis mil pessoas apoiaram um abaixo-assinado pedindo que a medalha seja “redesenhada”.
São Miguel Arcanjo é tradicionalmente representado como um alado
santo guerreiro, de espada na mão para vencer Satã. Este aparece como um
ser animalesco ou com formas humanas com asas de dragão e rabo.
Se for totalmente eliminado, vai sobrar apenas São Jorge, o padroeiro
da Inglaterra que apareceu na outra face da medalha, matando o dragão,
outra situação complexa nos dias atuais.
Disse famosamente Winston Churchill sob o viés esquerdista da tradicional rede pública de rádio e televisão:
“Se a BBC cobrisse a luta de São Jorge com o dragão, torceria pelo dragão”.
A polêmica da medalha, criada em 1818 pelo rei George IV (um dia, o
filho de William e Kate será outro rei com este nome) coincidiu com os
novos planos do príncipe Harry e sua mulher, Meghan, de construírem uma
carreira de celebridades antenadas com questões contemporâneas.
“O racismo institucional não tem lugar na nossa sociedade e, no
entanto, é endêmico”, disse o príncipe numa premiação à distância.
O furor despertado nos Estados Unidos pela morte brutal de Floyd e
ampliado para estátuas e instituições com nomes de “racistas” tem um
equivalente igual, inclusive nos precedentes, na Inglaterra.
Se há católicos que se exasperam com a “modernização” da Igreja
defendida pelo papa Francisco, deveriam encontrar consolo na Igreja
Anglicana.
Exatamente igual à fé católica, exceto pela ruptura com o papa, com a
vida monacal e com o celibato, a Igreja Anglicana segue o catecismo
politicamente correto ao ponto da loucura.
Disse no começo de junho o arcebispo da Cantuária, Justin Welby, que
estátuas e monumentos na sublime catedral gótica de Westminster, uma das
tantas igrejas tomadas aos católico quando Henrique VIII rompeu com
Roma, está passando por uma revisão completa.
“Algumas terão que ser tiradas”, antecipou.
E é claro que a igreja, já no apagar das luzes por falta de fiéis,
tem que “reconsiderar” a representação de Jesus como um homem branco.
São Miguel, arcanjo de uma hierarquia tão superior que só tem dois
iguais, Gabriel e Rafael, vai ficar sem ninguém para vencer
apoteoticamente?
Santo de devoção popular, o arcanjo é o “poderosíssimo príncipe dos
exércitos do Senhor”, “guia e consolador do povo israelita”, “esplendor e
fortaleza da Igreja Militante” e “guardião do paraíso”. Entre outras
qualidades.
Não é por uma mudança de medalha que vai se abalar. E ainda tem Angelina Jolie para chorar as pitangas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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