Mais exames, tratamentos melhores e até mutação no comportamento e na
carga viral ajudam a entender a disparidade entre as duas curvas. Vilma Gryzinski:
Quem acompanha o noticiário tem motivos para acreditar que os Estados Unidos
estão na beira do precipício. Quase 60 mil infectados num único dia,
caminhando para 100 mil, segundo disse o infectologista chefe Anthony
Fauci.
São os motivos errados.
No pico da epidemia, em 19 de abril passado, morreram 1.733 pessoas com Covid-19. Ontem, foram 273. No Brasil, um dia antes, foram 1.111.
Desde o auge, as duas curvas – contagiados e mortos – começaram a se
separar nos Estados Unidos, num movimento chamado de jacaré abrindo a
boca. E a boca não para de abrir.Governo Bolsonaro: Sinais de paz Leia
nesta edição: a pacificação do Executivo nas relações com o Congresso e
ao Supremo, os diferentes números da Covid-19 nos estados brasileiros e
novas revelações sobre o caso Queiroz
O retorno do fechamento de estabelecimentos comerciais em estados
importantes como o Texas e a Flórida cria a impressão de que situação
está fora de controle.
O “refechamento” é uma opção ruim para todos, principalmente para os
proprietários, que gastam para abrir de novo e em seguida perdem um
faturamento já não muito animador.
Mas não é uma situação desbaratada. Fora exceções localizadas como
Houston, dados como a ocupação de leitos de UTI indicam uma taxa que
oscila, como pequenas ondas, em torno dos 60%, em nenhum momento perto
do estado crítico.
O primeiro motivo da disparidade entre casos confirmados e mortos é o
aumento do número de testes – nenhum outro país fez mais testes do que
os Estados Unidos. Foram quatro milhões na semana passada.
Outra hipótese, levantada por Fauci: o vírus passou por uma mutação
para ficar mais contagioso, uma adaptação típica dos agentes infecciosos
movidos pela mesma e unânime lei da própria reprodução.
A mutação foi detectada, ainda sem confirmação, numa espícula, as
“garrinhas” de proteína que se acoplam a células saudáveis do sistema
respiratório, transformando-as em produtoras de clones do vírus.
O fato de que tenha se tornado mais contagioso não significa que o
Sars-CoV-2, o nome oficial do novo coronavírus, seja necessariamente
mais deletério, o que aumentaria a gravidade dos casos e o índice de
mortos.
Segundo um estudo de Stanford, baseado em testes de anticorpos, a
letalidade real do vírus é de 0,25%. Ou seja, mata uma pessoa em 400.
Nos dois extremos, o mais letal e o menos, ficam o influenza, com 0,1%, e o Ebola, com 50% de letalidade.
O abaixo-assinado de 239 especialistas divulgado ontem pelo New York
Times, apelando pelo reconhecimento de que o vírus paira no ar através
de aerossóis, assustou muita gente.
Um vírus aerotransportado teria um alcance de contágio muito maior, principalmente em ambientes fechados e sem ventilação.
A ideia comum de que isso aconteça leva os leigos a ter ideias
“profundamente idiotas”, segundo os termos nada amenos do
epidemiologista Bill Hanage, de Harvard.
“Temos a noção de que a transmissão aérea significa gotículas que
pairam no ar capazes de nos infectar muitas horas depois,
esparramando-se pela rua e entrando pela caixa de correio até conseguir
entrar em nossas casas”.
Não é absolutamente isso que acontece, coincidem todos os cientistas, numa dose de alívio de alcance mundial.
Já pensaram se tivéssemos que usar máscaras dentro de casa, o tempo todo, para escapar de um vírus voador?
O tratamento dos pacientes de Covid-19 também está avançando, embora não existam medicamentos específicos para a doença.
Os dois remédios adaptados mais úteis, segundo estudos mais recentes,
são o remdesivir, originalmente um remédio para Ebola que nunca chegou a
ter esse uso.
Problemas: o custo e a rapidez do governo americano ao adquirir 99% dos estoques do antiviral.
O remdesivir acelera a recuperação de pacientes que ainda não
chegaram ao estágio derradeiro de precisar de respiradores, diminuindo o
tempo de hospitalização.
Ele é produzido apenas pela Gilead, um laboratório especializado em antivirais. O tratamento costuma ser de cinco doses diárias.
Preço nos Estados Unidos para pacientes em sistemas públicos de
saúde, como o Medicare: 390 dólares por dose, num total de 2.340.
Para pacientes com planos privados de saúde, salta para 3.120 dólares.
Muitíssimo mais barata, mas politizada a ponto em que nem estudos
científicos convencem, para um lado ou outro, é a hidroxicloroquina.
Um estudo feito pelo Henry Ford Health System, um programa de saúde
sem fins lucrativos na região de Detroit, o berço do automóvel, teve os
seguintes resultados:
Dos 2.541 pacientes em seus hospitais estudados entre 10 de março e 2
de maio, morreram 26,4% dos que não receberam o medicamento.
Entre os que tomaram a hidroxicloroquina em no máximo 48 horas depois de hospitalizados, o índice de mortes foi de 13%.
Não esperem ver grande divulgação desse estudo.
Como Donald Trump disse, em maio, que tinha tomado preventivamente o
medicamento para malária, formou-se uma torcida mundial para que: a) a
hidroxicloroquina seja considerada o pior remédio do universo; e b) o
coração presidencial não aguente a dose.
Não é preciso nem falar sobre o similar brasileiro.
Os Estados Unidos são parecidos com o Brasil no sentido da grande
extensão territorial e do sistema federativo pelo qual os estados
conduzem os programas de saúde pública.
Os dois países hoje estão nos dois primeiros lugares da lista de mais casos de Covid-19.
No índice de mortes por milhão de habitantes, os Estados Unidos têm
400 e o Brasil, 305 – amplamente superados por Bélgica, Espanha, Reino
Unido, Itália e até a Suécia, com seu programa especial de buscar, sem
declará-la, a imunidade de rebanho.
Sobre esta, dois novos estudos indicam que o alcance da infecção seja
maior do que o constatado até agora se for usado o critério do
linfócitos T, especializados no combate a infecções, e não apenas o
nível de anticorpos específicos para a Covid-19.
Extrapolando-se os resultados dos estudos, o número de pessoas que já
tiveram contato com o novo vírus chegaria a 30% em Londres e 40% em
Nova York.
Para alcançar a imunidade de grupo, é preciso que o índice seja de 60% a 70%.
O bichinho continua a dar um trabalho danado, mas seus pontos fortes e
fracos vão sendo desvendados pela maior concentração de estudos
científicos da história da humanidade.
Faz parte do processo que estes estudos sejam, eventualmente, contraditórios e contestados.
É batendo cabeça que o conhecimento científico, ajudado pela prática clínica, avança.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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