Carlos Russo
Espaço Literário Marcel Proust
Espaço Literário Marcel Proust
Estamos
em princípios de 1878. “Iaiá Garcia” acaba de ser publicado com certo
sucesso. Aquela seria a última obra de Machado de Assis tendo o amor
como tema e as relações amorosas como enredo.
Se
Machado toda a vida fora reservado, amigo de poucos amigos, recolhido
mesmo, aquele ano fora excepcional; até mesmo dona Carolina, sua esposa,
evitava interrompê-lo nas meditações e cismas sem fim.
FICOU DOENTE
– Pelo final de 78, entretanto, José Maria se sente mal dos intestinos e
o diabetes o tortura. Um pouco antes do Natal tem também nova convulsão
epilética. Dona Carolina o rodeia de atenções e carinho. Mas para sua
surpresa, dia 26 de dezembro, o escritor míope acorda sem conseguir nem
ler, nem escrever, mesmo com óculos novos.
Estranha
cegueira que terá a duração de quase três meses! Dona Carolina lê para
ele os jornais do dia. No dia 27, Machado entra em licença do serviço
público e o casal parte, para Friburgo.
Foram
três meses de recolhimento e recuperação física. E quando a Machado
volta a visão dos olhos, dona Carolina já tinha os apontamentos de um
novo romance ditado pelo marido, e eles retornam para o Catete, no Rio.
ADEUS ÀS ILUSÕES
– A estranha enfermidade que lhe acometeu os olhos, de certa forma,
abriram-lhe “os olhos da alma” e dela nascera o “realismo fantástico”,
encarnado em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, num Machado que perdera
todas as ilusões de que a sociedade brasileira pudesse um dia se ver
livre do paternalismo, do escravagismo e dos preconceitos.
O
romance tem como pano de fundo a sociedade escravocrata, tempos em que a
oligarquia do café sentia-se segura econômica e politicamente,
representada ora pelo Partido Conservador, ora pelo Liberal, que se
alternavam no sistema de parlamentar do Império.
São
filhos, parentes ou os próprios latifundiários que se fazem representar
na Corte. Uma vez nela ou nas Províncias, seus membros exercem a
política baseada no compadrio e na corrupção, ou apenas nada fazem na
vida, exceto flanar.
O trabalho real na sociedade ou é escravo, ou é exercido por agregados, em situações de submissão clientelista.
PELOS OLHOS DA ALMA
– Essa é a centralidade do enredo de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”,
romance escrito pelos olhos da alma, onde não existe uma única frase
que não tenha uma segunda intenção ou um propósito espirituoso e se nos
colocarmos a certa distância do texto, fica simples entrever as grandes
linhas da estrutura social de classes e são essas que dão a terceira
dimensão ou integridade ao romance, segredos da obra de um gênio.
O
humor machadiano irá decompor as atitudes “nobres” ou apenas
convencionais, pondo a nu as razões do insaciável amor-próprio, das
quais a vaidade é o paradigma e a futilidade, o sinônimo. Humor que
mescla a convenção e o sarcasmo como um paradoxo de vida.
O
avô paterno de Machado de Assis escravo nasceu e escravo morreu no Rio
de Janeiro. O pai, negro liberto, pintor de paredes e a mãe, uma senhora
portuguesa, lavadeira. Em 1839, José Maria nasceu numa quinta no morro
do Livramento.
POBRE E TRISTE
– Esperava-o uma primeira infância paupérrima e triste, com a perda da
única irmã, e quatro anos após, da mãe. Por madrasta, entretanto, o
destino deu-lhe D. Maria Inês, mulata sem filhos, doceira que trabalhava
em uma escola, que o amou e alfabetizou.
Joaquim
Maria garoto ajudava a família vendendo balas, doces, engraxando botas
pelas ruas do morro ou pelas bandas de São Cristóvão. Por única escola
teve um colégio beneficente dirigido por senhoras da sociedade.
Nessa
época aplicavam-se nas escolas, principalmente em crianças pobres,
castigos corporais. E se Machado nunca provou da palmatória ou do
ajoelhar-se no milho, isto ele o deveu a uma enorme avidez pelo
conhecimento e pela leitura, assim como por uma natural introversão e
recolhimento, que o acompanharão por toda vida.
VIROU POLIGLOTA
– E o menino tinha uma enorme facilidade para o aprendizado de línguas!
Aprendeu o latim com o bom padre Antônio José Sarmento, o francês com a
proprietária da padaria do bairro onde realizava alguns bicos. Quanto
ao inglês, quem o poderá dizer? Traduziria, quando adulto, trabalhos de
Baudelaire e foi um de nossos primeiros tradutores de Edgar Allan Poe.
Até mesmo o grego escrito não lhe era estranho.
Moço
magro e epilético, ao colocar-se nervoso, gaguejava. Mulato escuro
enfrentou os mesmos preconceitos raciais contra os quais Lima Barreto,
anos mais tarde, tanto lutaria para conseguir reconhecimento.
Com
15 anos incompletos publicou um soneto, o seu primeiro trabalho
literário, no “Periódico dos Pobres”. Em 1856, entrou para a Imprensa
Nacional como aprendiz de tipógrafo, e lá conheceu Manuel Antônio de
Almeida, um médico que abandonara a medicina para dedicar-se à
literatura. E o autor de “Memórias de um sargento de milícias”, se
tornou seu protetor até a morte.
JORNALISTA E POETA
– Em 1858, era colaborador no Correio Mercantil e, a convite de
Quintino Bocaiúva, passou a pertencer ao Diário do Rio de Janeiro. Um
primeiro livro de poesias, “Crisálidas”, é de 1864.
Na
revista “O Espelho”, estreou como crítico teatral. Principiava, então, a
longa carreira literária de um artista múltiplo: jornalista, contista,
cronista, romancista, poeta e teatrólogo. E coube a Machado a
apresentação à sociedade carioca do baiano Castro Alves, nosso poeta da
abolição!
Quando
colaborou com o folhetim “O Futuro”, órgão dirigido pelo irmão de
Carolina Augusta Xavier de Novais, a vida lhe presenteou. A moça branca,
recém-chegada de Portugal, alguns anos mais velha, encantou-se pelo
escritor. Eles se desposarão em 1869, após muita luta contra o
preconceito racial e social.
O GRANDE AMOR
– E Dona Carolina foi o grande amor que Machado teve na vida, sua
companheira por trinta e cinco anos, até que a morte dela os separou.
O
primeiro romance romântico, inspirado na felicidade que sentia após o
casamento, foi “Ressurreição”, de 1872. E como escritor, Machado se
manteria romântico por mais seis anos, até sua “cegueira”.
No
ano seguinte, o escritor foi nomeado primeiro oficial do Ministério da
Agricultura, iniciando assim uma carreira de burocrata até o final da
vida. Enquanto isto, tornou-se grande amigo de José Veríssimo, escritor
branco honestíssimo e sem preconceitos, que também descobriria o talento
de outro mulato, Lima Barreto.
CRIANDO A ACADEMIA
– Machado passou a colaborar na prestigiada “Revista Brasileira”. E foi
do grupo de intelectuais que com Machado se reunia na redação da
revista, que partiu a ideia da criação da Academia Brasileira de Letras.
No
dia 28 de janeiro de 1897, se instalou a Academia, e Machado de Assis
foi eleito Presidente da instituição, à qual se devotou até o fim da
vida.
Como
sempre deveu seu sustento e o de dona Carolina ao trabalho no
funcionalismo público, pois as escritas pouco lhe rendiam e ele não
desejava correr o risco de ser descriminado por ideias e posturas que
pudessem não ser aceitas pela elite da época. Mesmo assim, a
possibilidade de perda do emprego era constante e uma vez isto chegou a
ocorrer! Por sorte e graças a amigos, foi recontratado no serviço.
SARCASMO E CINISMO
– Machado de Assis, ultrapassada a fase romântica, quando ainda
acreditava que a sociedade paternalista e escravocrata poderia tornar-se
mais humana, envereda pelo caminho do sarcasmo e do cinismo da escrita
com duplo sentido, em que um narrador, nunca o autor, sempre se colocará
no papel das elites dominantes.
Para
aqueles olhares pouco atentos que o recriminaram de alienação, ele
deixou escrito: “Eu gosto de ver a política entrar pela literatura;
anima a literatura a entrar pela política, e dessa troca de visitas
nasce a amizade”.
“A
arte não deve desvairar-se no doido infinito das concepções ideais, mas
identificar-se com o fundo das massas, copiar, acompanhar o povo em
seus diversos movimentos, nos vários modos de sua atividade.”
AMARGURA E DECEPÇÃO
– Já para o leitor atento, sua obra, a partir do final dos anos 1870,
estará sempre repleta de enigmas, sua amargura e decepção para com os
homens e suas associações serão revestidas pela sátira e pela metáfora.
A
situação econômica do casal Assis só se torna um pouco mais folgada nos
anos 1880. Em 1884, o casal se muda para a Rua do Cosme Velho, 18, num
chalé pertencente à condessa de São Mamede. Sempre às voltas com livros e
papéis, foi apelidado pelos vizinhos de Bruxo; conta-se que queimava
cartas e velharias em um caldeirão aos fundos de sua casa.
Nosso
maior escritor, entretanto, somente se permitiu a linguagem crítica
direta, abandonando as máscaras e disfarces após a morte de dona
Carolina, em 1904. “Relíquias da Casa Velha” tem na introdução, o famoso
poema em homenagem à amada morta, e a seguir o primeiro conto “Pai
contra mãe”, um grito de escárnio contra a hipocrisia social. “Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco e alguma vez o cruel”.
AVESSO À VIDA SOCIAL
– Machado de Assis era bastante avesso à vida social. Com a morte da
esposa, isolou-se ainda mais e entrou em profunda depressão. Escreveu
para o amigo Joaquim Nabuco: “Foi-se a melhor parte da minha vida, e
aqui estou só no mundo”. Mas o gênio não se aquieta. No trabalho final
de sua vida, “Memorial de Aires”, ele retornará aos seus enigmas e
duplos sentidos.
A
respeito dos desmandos da elite branca e das nossas instituições,
sempre a serviço exclusivo daquelas, sem ideais de construção de uma
verdadeira Pátria para todos os brasileiros, afirma um Machado de Assis
desiludido: “Tudo é possível abaixo do sol e da lua. A nossa felicidade é
que morremos antes”.
A
última pessoa a visitá-lo foi um jovem intelectual, Astrogildo Pereira,
que anos após lideraria a fundação do Partido Comunista do Brasil.
Enterrado
no cemitério de São João Batista, o féretro de Machado teve cunho
oficial e homenagens do próprio Presidente Afonso Pena. No registro de
óbito, a sociedade preconceituosa ainda o segregaria. A elite qualificou
o nosso Maior Escritor de Todos os Tempos como: “funcionário público,
de cor branca…”
Machado
de Assis faleceu no mesmo dia e hora em que, em Cordesburgo, M.G.,
nascia outro grande escritor brasileiro: João Guimarães Rosa! Era o dia
29 de setembro de 1908, às 3,30 hs. da manhã!
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