Na edição dominical do Observador,
Rita Cipriano entrevista o tradutor e ensaísta Frederico Lourenço, que
verteu para o português a Bíblia grega em seis volumes e acaba de lançar
uma antologia de poetas gregos em edição bilíngue. Lourenço defende a
volta do grego e do latim ao ensino secundário:
Em 2006, Frederico Lourenço publicou pela Cotovia uma antologia de
poesia grega. Na altura, tentou “evitar sobreposições com a lendária
Hélade de Maria Helena da Rocha Pereira” e também poemas de Arquíloco,
Sólon e Simónides, porque estavam para sair traduções feitas por colegas
seus. “Achei que não fazia sentido colidir com o trabalho deles”,
admitiu, por email, ao Observador.
Passados 14 anos, e com uma edição há muito esgotada, Lourenço
decidiu que estava na altura de revisitar a sua coletânea,
acrescentando-lhe novos textos, outros poetas e, sobretudo, tendo em
conta as novas descobertas no campo da poesia grega, que faziam com que o
volume anterior estivesse desatualizado. Esta nova edição, Poesia Grega
de Hesíodo a Teócrito chegou às livrarias no dia 26 de junho, pela
Quetzal. Contém textos de 11 autores da Antiguidade Clássica, na sua
tradução para o português mas também, e pela primeira vez, no grego
original.
Frederico Lourenço explicou ao Observador que a necessidade de rever a
sua Poesia Grega adveio sobretudo “da rapidez com que edições de poesia
grega ficam desatualizadas, por causa das novas descobertas que vão
sendo feitas no Egito, donde vêm os papiros que, desde o século XIX, nos
têm alargado o horizonte da poesia grega e também da literatura dos
primeiros cristãos”.
No caso da sua antologia, estas descobertas afetaram sobretudo o
capítulo dedicado a Safo, a famosa poeta da ilha de Lesbos. “Senti
necessidade de fazer uma nova edição, tendo em conta esses novos
contributos”, afirmou o classicista, salientando que “Safo é de tal
forma importante, apesar dos poucos textos que nos chegaram dela, que a
ideia de ter dado a ler uma Safo ‘errada’ me incomodava, porque desde
2014 temos mais informações”.
Safo é um “milagre” na história da poesia grega. Nascida em Lesbos na
segunda metade do século VII a.C., num meio aristocrático, é uma das
poucas mulheres que se sabe terem escrito poesia na Grécia Antiga. É
também a primeira que se sabe ter cantado o amor entre mulheres. “Temos
nomes de outras mulheres, mas nada de significativo nos chegou delas”,
explicou o tradutor, frisando que “Safo é mesmo um milagre”. Da sua sua
extensa obra, que enchia nove volumes na Biblioteca de Alexandria,
chegaram-nos apenas algumas dezenas de fragmentos, traduzidos quase na
totalidade por Lourenço nesta nova edição da Poesia Grega.
No entanto, esse pouco é o suficiente para a considerarmos um nome de
primeira importância na literatura greco-latina. Há um perfume de
perfeição em Safo que, na minha opinião, só voltaremos a encontrar em
Vergílio”, afirmou o professor da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra.
Safo é um dos autores que Maria Helena da Rocha incluiu na Hélade
(uma antologia de cultura grega publicada originalmente em 1959 que, na
sua versão final, reúne mais de cinco centenas de textos de autores como
Anacreonte, Ésquilo ou Heródoto), mas os fragmentos que a helenista
selecionou não contêm quaisquer referências homossexuais. “A antologia
da Doutora Rocha Pereira tinha lacunas gritantes, dado que ela tentou
impor um photoshop idiossincrático à poesia grega, eliminando dela toda a
poesia de temática homossexual”, considerou Lourenço, que fez questão
de incluir desde o início na sua antologia “essa poesia homossexual por
ela eliminada”.
É por causa de novas descobertas como as referentes a Safo que
Frederico Lourenço considera que o estudo da poesia grega é sempre um
work in progress, “no sentido em que vamos tendo testemunhos novos em
que basear o estudo, devido a papiros entretanto descobertos e
publicados, mas também no sentido em que os estudos dos helenistas
contemporâneos trazem cada vez mais iluminações sobre a materialidade
poética do texto. Por exemplo, em 2006 nem eu nem ninguém tinha uma
ideia segura sobre a métrica de muitos poemas de Píndaro, porque o livro
revolucionário de um japonês chamado Kiichiro Itsumi, Pindaric Metre,
só foi publicado em 2009. Hoje sim, percebemos muito melhor o que é a
tessitura rítmica de um poema de Píndaro”, exemplificou.
Ele, tu e eu (fr. 31 PLF)
Aquele parece-me ser igual aos deuses,
o homem que à tua frente
está sentado e escuta de perto
a tua voz tão suave
e o teu sorriso maravilhoso. Na verdade isto
põe-me o coração a palpitar no peito.
Pois quando te olho num relance, já não
consigo falar:
a língua se me quebrou e um subtil
fogo de imediato se pôs a correr debaixo da pele;
não vejo nada com os olhos, zunem-me
os ouvidos;
o suor escorre-me do corpo e o tremor
me toma toda. Fico mais verde do que a relva
e tenho a impressão de que por pouco
não morro.
Um dos poetas que o classicista não incluiu na primeira versão da sua
coletânea e que agora fez questão de traduzir foi Hesíodo. “Hesíodo é, a
seguir a Homero, o prelúdio de toda a poesia greco-latina.” Os dois
autores partilham, aliás, várias características linguísticas, o verso
em que compuseram (hexâmetro) e a datação das suas obras mais antigas
(cerca de 700 a.C.). No caso de Hesíodo, este lugar pertence à Teogonia,
importante fonte mitológica que narra a origem do mundo e dos deuses. A
sua outra obra, Trabalhos e Dias, trata-se de um repositório de
sabedoria popular referente à agricultura, astronomia e superstições
várias, que relata, entre outros episódios, o mito de Pandora e o mito
das Cinco Idades, explicações para o trágico destino do ser humano.
Juntamente com a Ilíada e a Odisseia, as duas obras de Hesíodo
compõem os quatro grandes poemas da “aurora grega”, e Lourenço inclui
excertos de ambos na sua antologia. Porém, este poeta é muito menos
conhecido do que Homero, o que Lourenço considera prender-se
fundamentalmente “com o facto de a poesia de Hesíodo não ser narrativa.
Aliás, por alguma razão as passagens mais admiradas de Hesíodo são as
narrativas, como o Mito das Cinco Idades ou o Mito de Pandora. Pela
mesma razão, as pessoas interessam-se menos pelas Geórgicas de Vergílio e
mais pela Eneida”.
Frederico Lourenço admitiu que “se esta edição não fosse bilingue,
talvez não tivesse sentido necessidade de incluir Hesíodo, porque há uma
boa tradução da sua poesia na Imprensa Nacional. Mas vi a oportunidade
como um pretexto para ajudar as pessoas a ler Hesíodo em grego”,
afirmou. “Além de que os temas tratados nos trechos que selecionei de
Hesíodo vão dar o mote a muitos poetas tanto na Grécia como em Roma.”
Safo é considerada a primeira autora da literatura europeia |
Também Calímaco, a outra novidade desta nova edição da sua antologia,
é essencial para quem se dedique ao estudo da poesia latina. “Considero
a leitura de Calímaco obrigatória para quem se dedique ao estudo da
poesia em Roma. Em Coimbra leciono, entre outras coisas, uma cadeira
chamada Poesia Latina. Nela convido os alunos a perceber quão importante
foi a influência de Calímaco em Roma”, disse, lembrando que o poeta,
“funcionário da Biblioteca de Alexandria, era leitor e apreciador de
Hesíodo”.
A ideia de fazer uma edição bilingue, em português e no grego
original, partiu do editor da Quetzal, Francisco José Viegas, e foi
desde logo abraçada pelo tradutor, que acredita que “a necessidade de
edições bilingues” é “cada vez mais premente”. O também professor
considera “lamentável que não haja em Portugal edições de textos gregos e
latinos bilingues, como a coleção ‘Gredos’ em Espanha ou a coleção
‘Loeb’ de Harvard” e diz estar “cada vez mais convencido de que não faz
sentido nenhum estarmos a dar a ler traduções destes textos sem o texto
original”.
“O próprio facto de, na página par, estar o mesmo texto da página
ímpar, só que na língua original, há-de levar as pessoas, mais cedo ou
mais tarde, a perceber que algo não está a correr bem num sistema
educativo como o nosso, em que o grego desapareceu e o latim é
residual”, afirmou, acrescentando que, na sua opinião, é “uma questão de
urgência máxima que o nosso ensino secundário volte a proporcionar
aulas de grego e de latim. Somos a vergonha da Europa”.
Este ano tive uma aluna italiana Erasmus, que nos chegou a Coimbra
com cinco anos de latim no ensino secundário e mais dois no
universitário. Nada como uma experiência dessas para perceber quão
parolos nós somos.”
O classicista já tinha considerado numa entrevista anterior ao Observador,
concedida a propósito do lançamento da Nova Gramática do Latim no ano
passado, que era importante que “o acesso às línguas clássicas,
sobretudo no que toca ao latim”, começasse no ensino secundário, “bem
antes do 10.º ano. Diria que o momento ideal seria no 5.º ou 6.º ano de
escolaridade. Começando bem cedo, os alunos teriam a possibilidade de
aprender latim de forma lúdica, progressiva”, disse.
Ensinar latim e grego a partir do zero na universidade numa
licenciatura que só dura três anos parece-me uma solução muito
problemática. (…) Que competência numa língua adquire uma pessoa já
adulta no espaço de três anos? Não digo que não haja alunos sobredotados
que conseguem esse feito extraordinário, de chegaram ao fim de uma
licenciatura de três anos com uma boa competência em latim ou em grego.
Mas são a exceção.”
Esta foi a primeira edição bilingue do classicista, o que significa
que, além da tradução, foi também responsável pelo estabelecimento do
texto em grego. Uma experiência que classificou como “apaixonante”.
“Segui o critério habitual da coleção ‘Loeb’ de Harvard, que é de
estabelecer o texto com base nas informações oferecidas pelas edições
críticas já existentes ou por artigos em revistas especializadas, no
caso dos papiros”, começou por explicar. “Por muito que eu adorasse, não
tenho possibilidade de passear pela Europa a consultar manuscritos
gregos em Paris, Viena, Londres ou Berlim. Fiei-me nas informações dadas
em edições que são de reconhecida fidedignidade.”
Ode Olímpica II
a Terão de Agrigento,
vencedor na corrida de cavalos (476 a.C.)
Hinos soberanos da lira!
Que deus, que herói, que homem celebraremos?
Na verdade, Pisa pertence a Zeus. Os Jogos Olímpicos
estabeleceu-os Héracles,
como primícias da guerra.
Mas Terão, graças à quadriga vitoriosa,
deve ser proclamado, ele que é justo na consideração dos hóspedes,
o baluarte de Agrigento,
preclaro sustentáculo da cidade, descendente de antepassados ilustres,
os quais, esforçando-se muito no coração,
obtiveram uma sacra morada à beira rio, eles que eram
o olho da Sicília; avançava o tempo que lhes fora fadado,
juntando riqueza e felicidade
às virtudes que lhes eram congénitas.
Mas ó tu, Crónida filho de Reia, que reges a sede do Olimpo,
o cume dos concursos e o vau do Alfeu!
Agradado com os meus cantos,
protege-lhes de bom grado a terra pátria
em prol da progénie vindoura. Uma vez as coisas feitas,
quer com justiça ou para lá da justiça,
nem o Tempo, pai de todas as coisas,
conseguiria invalidar o termo dos atos.
Só que o esquecimento surgiria com um destino feliz:
pois sob as nobres alegrias morre o sofrimento,
subjugado na sua malevolência,
quando o Destino de deus atirar
em direção ao alto a ventura sublime. Esta frase vem a propósito
das filhas de Cadmo de belos tronos, elas que sofreram enormidades.
Mas a dor profunda despenha-se
ante a presença de melhores benesses.
Vive pois entre os Olímpios, depois de morrer no fragor
do relâmpago, Sémele de longos cabelos; e Palas
ama-a sempre; e também
Zeus pai; e mais ainda a ama o filho, portador de hera.
E dizem que no mar,
no meio das marinhas filhas de Nereu, uma vida imperecível
foi concedida a Ino, para todo o sempre.
Na verdade, dos mortais não está determinado
o termo da morte,
nem quando chegaremos ao fim do dia tranquilo,
filho do sol, com o que há de bom incólume.
É que torrentes diferentes de lados diferentes
correm em direcção aos homens com prazeres e dores.
Assim o Destino, que a herança paterna
desta família detém — o benevolente fado –, à ventura pelos deuses dada
ainda acrescenta algum sofrimento,
que será de novo revertido noutro tempo;
desde aquele dia em que o filho fadado 1 matou Laio
ao dar de caras com ele, cumprindo o oráculo
há muito proferido em Delfos.
Vendo tal coisa a Fúria aguçada,
matou-lhe a belicosa descendência em recíproca carnificina.
Mas sobreviveu Tersandro ao tombado Polinices,
e em competições de jovens
e nas lutas da guerra
foi honrado, vergôntea salvadora da casa de Adrasto.
Por isso fica bem que aquele cuja raíz vem desse sémen,
o filho de Enesidamo,
encomiásticos cantos e liras tenha a sorte de encontrar.
Pois em Olímpia ele próprio
recebeu o prémio; em Delfos, para ele e seu irmão,
— e no Istmo também –, as Graças em conjunto
trouxeram as coroas floridas pelas quadrigas
de doze voltas. Ganhar
liberta das preocupações quem entra na competição.
A riqueza adornada com virtudes
traz destas coisas e daquelas
o momento certo, ao apoiar funda e selvagem ambição:
é um astro resplandecente, veríssima
luz para o homem! Se quem possuísse a riqueza soubesse o futuro,
que dos que morrem aqui na terra
logo os espíritos impotentes
pagam as penas; quanto às faltas cometidas neste reino de Zeus,
debaixo da terra alguém as julga,
proferindo a sentença com obrigatoriedade hostil.
Porém em noites sempre iguais,
gozando a luz do sol em dias sempre iguais, os bons
recebem existência menos penosa, sem revolverem
a terra com a força das mãos,
nem a água do mar,
em prol de exígua sobrevivência; mas, junto dos honrados
pelos deuses, aqueles que se alegraram nos juramentos cumpridos
têm uma existência isenta de lágrimas,
ao passo que os outros sofrem dores que ninguém ver aguentaria.
Mas aqueles que ousaram três vezes
ficar num lado e no outro, mantendo a alma livre
de toda a espécie de injustiça, esses seguem a vereda de Zeus,
além da torre de Crono. Aí, à volta da ilha
dos bem-aventurados, sopram
as brisas do oceano; refulgem as flores de ouro,
umas em terra nas árvores lustrosas,
enquanto a outras alimenta o meio aquático;
de tais flores entrelaçam as mãos com grinaldas e tecem coroas,
sob as sentenças justas de Radamanto,
a quem o grande pai mantém sentado à sua beira,
o marido de Reia, ela que de todos
tem o trono mais elevado.
Peleu e Cadmo contam-se entre eles.
E Aquiles, a quem trouxe — após ter persuadido
o coração de Zeus com súplicas — a mãe.
Foi ele que derrubou Heitor, de Tróia
a forte coluna invencível, e deu Cicno à morte,
assim como o filho etíope da Aurora. Muitas
são as velozes flechas que tenho debaixo
do braço na aljava,
flechas que falam a quem compreende! Mas em geral
é preciso intérpretes. Sábio é quem muito sabe por natureza.
Os que precisam de aprender são como corvos
alarves na garrulice, que grasnam em vão
contra a ave sagrada de Zeus.
Aponta o arco para o alvo: vai, meu coração! Em quem
acertaremos de novo com espírito gentil, disparando
as setas da fama? Na verdade,
apontando para Agrigento,
proclamarei sentença jurada com mente veraz:
em cem anos nenhuma outra cidade gerou
homem mais benfazejo nas intenções
para os amigos nem com mão mais generosa
do que Terão! Mas ao louvor chega a saciedade
quando não é contida com justeza, mas, instigada por homens gananciosos,
pretende linguajar
e obscurecer as belas acções
de homens bons. Pois os grãos de areia escapam à contagem.
E todas as alegrias, que aquele homem proporcionou aos outros,
quem as poderia contar?
"Poesia Grega de Hesíodo a Teócrito". Tradução de Frederico Lourenço
A falta de tempo é um dos problemas que Lourenço espera que possa ser
ultrapassado quando se reformar. “Talvez quando me reformar me possa
dar ao luxo de fazer uma edição a partir do zero, com a consulta direta
dos manuscritos”, admitiu ao Observador. “Terei de escolher um autor de
quem haja manuscritos na Biblioteca Laurenciana de Florença, porque ela
fecha sempre às 14h. O resto da tarde será para rever igrejas e voltar
todos os dias aos Uffizi”, que guarda alguns dos mais importantes
trabalhos dos grandes mestres da pintura italiana.
Escolher o seu museu favorito em Florença parece ser fácil, mas o
mesmo não se pode dizer quando se trata de selecionar um poema favorito
da sua antologia. “Adoro todos.” Ainda assim, “se tivesse de escolher o
meu poema preferido da poesia grega, excetuando a Ilíada e a Odisseia,
que estão no topo de pirâmide, escolheria a ‘Ode Olímpica II’ de
Píndaro, cuja edição e tradução me deram uma felicidade enorme”. E
porquê? Porque “é um poema espiritualíssimo sobre o Agora e sobre o
Além, imbuído de um misticismo que tem tudo a ver comigo. Na arte, na
literatura e na música, prefiro de um modo geral as coisas santas às
profanas, embora eu próprio de santo não tenha nada e até seja, em
termos de personalidade, saudavelmente profano.”
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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