A proposta de “construção” de uma sociedade presumivelmente perfeita esconde a tirania. Theodore Dalrymple para a revista Oeste, edição deste final de semana:
Eu estava no Brasil por acaso quando o ex-presidente Lula foi preso.
Correndo o risco de irritar alguns leitores, admito que não consegui
deixar de sentir pena do homem. Pensei que qualquer um que estivesse
bêbado em sua última aparição pública por alguns anos não podia ser de
todo ruim.
Recentemente fui a uma grande livraria em Paris que tinha acabado de
reabrir depois das restrições da covid-19 para procurar um livro sobre o
Brasil. Só havia um, e naturalmente era bem esquerdista. O fato é que
apenas intelectuais de esquerda se interessam por países distantes, de
modo que as leis do mercado ditam que todos os livros desse tipo sejam
em favor da abolição do mercado.
O livro era de um professor de economia de São Paulo chamado Fabio
Luis Barbosa dos Santos e intitulado L’espoir vaincu par la peur (“A
esperança vencida pelo medo”) — de Lula à Bolsonaro. O autor é um
comunista não reconstruído, ainda sonhando seus sonhos adolescentes de
perfeição e de uma sociedade em que todos trabalham para o bem de todos
além de si mesmo. Pensei em Santo Agostinho enquanto lia: “Senhor,
faz-me puro, mas não ainda”. No caso do professor Barbosa dos Santos, no
entanto, teria sido “inevitabilidade histórica, traga a revolução, mas
não ainda” — porque achei difícil acreditar que, se a revolução viesse
em favor daquilo que ele escreve tão ardentemente, a qualidade de sua
vida como professor universitário em São Paulo teria melhorado muito.
Existe algo delicioso, afinal, em estar em total oposição a tudo o que
existe do ponto de vista da moral e da superioridade intelectual (sei
por experiência própria); e, com certeza, depois da revolução, ele
rapidamente se exilaria em uma universidade no meio-oeste dos Estados
Unidos, onde continuaria pregando as glórias da revolução de que fugiu.
Sem ter, eu mesmo, uma ideia de solução para os muitos e manifestos
problemas do Brasil (eu não teria uma solução tão geral mesmo, ou
especialmente, se soubesse mais sobre o país), duvido que a expropriação
em massa sugerida pelo autor resultaria em muita coisa além de fome,
matança e tirania. Leio com uma espécie de humor ácido o seguinte:
No Brasil, quaisquer proposições que sugiram um modelo de civilização
alternativa, seja do “bem-viver” bolivariano ou do socialismo, não são
ouvidas…
Para o autor, sociedades são “construídas” (uma analogia preferida
pelos totalitaristas) como Legos, mas não acho que os modelos de Cuba ou
da Venezuela sejam especialmente encorajadores. “Aquele que serve a uma
revolução”, disse Bolívar resumindo sua vida quando se aproximava de
seu infeliz fim, “ara o mar” — ou, se for professor universitário,
escreve livros sobre ela.
O mais interessante para mim nesse livro foi a análise marxista do
declínio do futebol brasileiro, a que o autor deu uma quantidade
surpreendente de espaço (isto é, surpreendente para alguém que não é
brasileiro). Perdi todo o interesse no esporte por volta dos 15 anos e
considero a importância dada a ele, não só no Brasil, mas em outros
lugares, incluindo meu país, um sinal de profundo infantilismo, mas de
fato assisti pela televisão à derrota do Brasil para a Alemanha na
semifinal da Copa do Mundo, que até eu considerei constrangedora, porque
estava evidente que a seleção alemã poderia ter feito ainda mais gols
se tivesse considerado conveniente fazê-los.
O professor compara o futebol brasileiro de antigamente com seu
estado atual. Nos bons e velhos tempos, os jogadores brasileiros eram
leais ao time e ao país, mas agora são mais ou menos “criados” para ser
vendidos assim que possível, e com grande lucro, para clubes europeus
como o Barcelona e o Manchester United. Para ele, isso é emblemático da
posição de subordinação do Brasil no mundo globalizado.
Lembro do futebol na Inglaterra da minha juventude, quando eu perdia
muito tempo acompanhando o esporte. Naqueles anos, jogadores
profissionais tinham um salário máximo que era apenas um pouco mais alto
que o de um operário especializado de uma fábrica. Os estádios eram
desconfortáveis — pouco mais que terraços de concreto cobertos com
enormes barracões de lata, se você tivesse sorte — e 90% dos ingressos
eram para lugares em pé. Quando chovia, como muitas vezes acontecia, o
campo virava lama, e os jogadores se arrastavam; a bola, tendo absorvido
muita água, pesava uma tonelada e podia causar danos cerebrais a quem
fosse idiota o bastante para cabeceá-la. Sobre a vida dos jogadores, não
sabíamos absolutamente nada; depois da partida, eles voltavam para casa
de ônibus, muitas vezes para acomodações alugadas. Depois que a
temporada acabava, precisavam procurar um emprego para se segurar até a
temporada seguinte.
O jogador mais famoso que já vi foi Stanley Matthews. Ele continuou
jogando profissionalmente até os 50 anos. Apesar da origem humilde, era
um cavalheiro perfeito. Nunca violava as regras nem roubava; teria
considerado desonroso e degradante fazê-lo. Era formidavelmente
habilidoso, um verdadeiro herói, mas um herói modesto. E não desfilava
em Ferraris nem Maseratis, que ele comprava com os ganhos de um dia.
Que mundo diferente e, em alguns aspectos, melhor era aquele! Claro,
os jogadores de hoje são mais rápidos, estão em melhor forma, e são mais
habilidosos do que naquela época. Independentemente de qualquer coisa,
as condições em que jogam melhoraram para além do imaginável, assim como
as condições em são vistos fazendo-o. Quando eu era garoto, o jogo era
muito mais proletário do que hoje: havia apenas uma pequena proporção de
seguidores de classe média. Era barato assistir, mas agora apenas os
ricos ou os tolos conseguem pagar por isso.
O professor sente nostalgia dos velhos tempos, assim como eu, mas ele
não explicita como recuperá-los. Ele interromperia o escoamento de
jogadores brasileiros para a Europa, mas não considera que o tipo de
regime que propõe impediria os cidadãos brasileiros de deixar o país, se
assim desejassem. Esse é o tipo de libertação de que ele gostaria.
Talvez o professor estivesse certo em escolher o futebol como exemplo.
Theodore Dalrymple é o pseudônimo
do psiquiatra britânico Anthony Daniels. É autor de mais de trinta
livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no
Brasil pela editora É Realizações), estão A Vida na Sarjeta, Nossa
Cultura, ou O que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque
global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência
para reconhecidos veículos de imprensa, como The New Criterion, The
Spectator e City Journal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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