MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Dalrymple: "O autoritarismo dos intelectuais de esquerda".


A proposta de “construção” de uma sociedade presumivelmente perfeita esconde a tirania. Theodore Dalrymple para a revista Oeste, edição deste final de semana:


Eu estava no Brasil por acaso quando o ex-presidente Lula foi preso. Correndo o risco de irritar alguns leitores, admito que não consegui deixar de sentir pena do homem. Pensei que qualquer um que estivesse bêbado em sua última aparição pública por alguns anos não podia ser de todo ruim.

Recentemente fui a uma grande livraria em Paris que tinha acabado de reabrir depois das restrições da covid-19 para procurar um livro sobre o Brasil. Só havia um, e naturalmente era bem esquerdista. O fato é que apenas intelectuais de esquerda se interessam por países distantes, de modo que as leis do mercado ditam que todos os livros desse tipo sejam em favor da abolição do mercado.
O livro era de um professor de economia de São Paulo chamado Fabio Luis Barbosa dos Santos e intitulado L’espoir vaincu par la peur (“A esperança vencida pelo medo”) — de Lula à Bolsonaro. O autor é um comunista não reconstruído, ainda sonhando seus sonhos adolescentes de perfeição e de uma sociedade em que todos trabalham para o bem de todos além de si mesmo. Pensei em Santo Agostinho enquanto lia: “Senhor, faz-me puro, mas não ainda”. No caso do professor Barbosa dos Santos, no entanto, teria sido “inevitabilidade histórica, traga a revolução, mas não ainda” — porque achei difícil acreditar que, se a revolução viesse em favor daquilo que ele escreve tão ardentemente, a qualidade de sua vida como professor universitário em São Paulo teria melhorado muito. Existe algo delicioso, afinal, em estar em total oposição a tudo o que existe do ponto de vista da moral e da superioridade intelectual (sei por experiência própria); e, com certeza, depois da revolução, ele rapidamente se exilaria em uma universidade no meio-oeste dos Estados Unidos, onde continuaria pregando as glórias da revolução de que fugiu.

Sem ter, eu mesmo, uma ideia de solução para os muitos e manifestos problemas do Brasil (eu não teria uma solução tão geral mesmo, ou especialmente, se soubesse mais sobre o país), duvido que a expropriação em massa sugerida pelo autor resultaria em muita coisa além de fome, matança e tirania. Leio com uma espécie de humor ácido o seguinte:

No Brasil, quaisquer proposições que sugiram um modelo de civilização alternativa, seja do “bem-viver” bolivariano ou do socialismo, não são ouvidas…

Para o autor, sociedades são “construídas” (uma analogia preferida pelos totalitaristas) como Legos, mas não acho que os modelos de Cuba ou da Venezuela sejam especialmente encorajadores. “Aquele que serve a uma revolução”, disse Bolívar resumindo sua vida quando se aproximava de seu infeliz fim, “ara o mar” — ou, se for professor universitário, escreve livros sobre ela.

O mais interessante para mim nesse livro foi a análise marxista do declínio do futebol brasileiro, a que o autor deu uma quantidade surpreendente de espaço (isto é, surpreendente para alguém que não é brasileiro). Perdi todo o interesse no esporte por volta dos 15 anos e considero a importância dada a ele, não só no Brasil, mas em outros lugares, incluindo meu país, um sinal de profundo infantilismo, mas de fato assisti pela televisão à derrota do Brasil para a Alemanha na semifinal da Copa do Mundo, que até eu considerei constrangedora, porque estava evidente que a seleção alemã poderia ter feito ainda mais gols se tivesse considerado conveniente fazê-los.

O professor compara o futebol brasileiro de antigamente com seu estado atual. Nos bons e velhos tempos, os jogadores brasileiros eram leais ao time e ao país, mas agora são mais ou menos “criados” para ser vendidos assim que possível, e com grande lucro, para clubes europeus como o Barcelona e o Manchester United. Para ele, isso é emblemático da posição de subordinação do Brasil no mundo globalizado.

Lembro do futebol na Inglaterra da minha juventude, quando eu perdia muito tempo acompanhando o esporte. Naqueles anos, jogadores profissionais tinham um salário máximo que era apenas um pouco mais alto que o de um operário especializado de uma fábrica. Os estádios eram desconfortáveis — pouco mais que terraços de concreto cobertos com enormes barracões de lata, se você tivesse sorte — e 90% dos ingressos eram para lugares em pé. Quando chovia, como muitas vezes acontecia, o campo virava lama, e os jogadores se arrastavam; a bola, tendo absorvido muita água, pesava uma tonelada e podia causar danos cerebrais a quem fosse idiota o bastante para cabeceá-la. Sobre a vida dos jogadores, não sabíamos absolutamente nada; depois da partida, eles voltavam para casa de ônibus, muitas vezes para acomodações alugadas. Depois que a temporada acabava, precisavam procurar um emprego para se segurar até a temporada seguinte.

O jogador mais famoso que já vi foi Stanley Matthews. Ele continuou jogando profissionalmente até os 50 anos. Apesar da origem humilde, era um cavalheiro perfeito. Nunca violava as regras nem roubava; teria considerado desonroso e degradante fazê-lo. Era formidavelmente habilidoso, um verdadeiro herói, mas um herói modesto. E não desfilava em Ferraris nem Maseratis, que ele comprava com os ganhos de um dia.

Que mundo diferente e, em alguns aspectos, melhor era aquele! Claro, os jogadores de hoje são mais rápidos, estão em melhor forma, e são mais habilidosos do que naquela época. Independentemente de qualquer coisa, as condições em que jogam melhoraram para além do imaginável, assim como as condições em são vistos fazendo-o. Quando eu era garoto, o jogo era muito mais proletário do que hoje: havia apenas uma pequena proporção de seguidores de classe média. Era barato assistir, mas agora apenas os ricos ou os tolos conseguem pagar por isso.

O professor sente nostalgia dos velhos tempos, assim como eu, mas ele não explicita como recuperá-los. Ele interromperia o escoamento de jogadores brasileiros para a Europa, mas não considera que o tipo de regime que propõe impediria os cidadãos brasileiros de deixar o país, se assim desejassem. Esse é o tipo de libertação de que ele gostaria. Talvez o professor estivesse certo em escolher o futebol como exemplo.

Theodore Dalrymple é o pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. É autor de mais de trinta livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações), estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura, ou O que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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