Transgressor, amante da liberdade e crítico dos costumes instituídos,
Bocage foi perseguido pela censura e preso. Seu biógrafo, Daniel Pires, é
entrevistado por Rita Cipriano para o Observador, edição deste sábado:
Daniel Pires não nasceu em Setúbal, mas é a cidade de Bocage que mais
sente como sua. Foi lá, quando andava no liceu, que descobriu o poeta
sadino, popular entre os rapazes por causa dos seus poemas eróticos.
Mais tarde, já licenciado, teve oportunidade de seguir os passos de
Bocage no Oriente, quando foi leitor de português em Macau, Cantão e
Goa. De regresso a Setúbal, e como uma admiração cada vez mais
solidificada pelo escritor, fundou em 1999 o Centro de Estudos
Bocageanos para ajudar na divulgação da sua obra e vincar a sua
relevância no panorama literário, social e político português. Em 2015,
por altura dos 250 anos do nascimento do poeta, publicou pela Imprensa
Nacional – Casa da Moeda (INCM) o estudo Bocage e a Imagem e o Verbo, e,
quatro anos, depois foi responsável pela organização da obra completa
de Bocage, que saiu pela mesma editora. Este ano, voltou a Bocage para
contar a sua vida e fazer justiça ao homem à frente do seu tempo, ao
“poeta diferente, que remava contra a maré” e que por isso pagou pagou
caro.
Defensor da liberdade e feroz crítico dos costumes estabelecidos,
Bocage foi perseguido pela censura, obrigado em vários momentos a
remeter-se à clandestinidade e levado duas vezes para a prisão do
Limoeiro, em Lisboa, uma por criticar a classe política (nomeadamente o
intendente geral da polícia, Pina Manique, um dos homens mais poderosos
do reino) e outra por pertencer à Maçonaria. A sua vida “acidentada,
irregular e desregrada” foi deixando as suas marcas e, quando morreu,
Bocage era pobre, respeitado apenas por alguns e odiado por muitos. O
seu funeral foi pago por amigos e os seus restos mortais sepultados numa
vala comum, num cemitério de uma igreja lisboeta há muito desaparecido.
Depois da publicação dos seus poemas eróticos no século XIX, foi a
imagem de um poeta descarado, ligado à pornografia, que persistiu ao
longo do tempo. Uma ideia errada que Daniel Pires considera injusta e
que sente necessidade de destruir, recuperando “o verdadeiro Bocage”.
Foi isso que tentou fazer na biografia Bocage ou o Elogio da Inquietude,
recentemente publicada pela INCM, e foi sobre isso que conversámos
durante esta entrevista.
Pareceu-me pela leitura desta biografia que Bocage é um autor que
admira muito. Este livro é, aliás, fruto de várias décadas de estudo e
de investigação.
É verdade.
Como é que começou este amor por Bocage? Sei que têm uma coisa em comum — são os dois de Setúbal.
Ele nasceu em Setúbal, eu vim para cá aos 11 anos, mas é quase a
mesma coisa. Bocage é muito admirado nesta cidade, claro. Quando andava
no liceu, muitos dos miúdos da minha idade liam em grupo a poesia
erótica. Sabia que tinha sido perseguido, que tinha tido uma vida muito
aventureira e a partir daí [fui-me interessando]. E claro, a obra. Acima
de tudo a obra, que foi importantíssimo. Depois vivi muito tempo no
estrangeiro [onde dei aulas de português em várias universidades],
cheguei a estar na Índia, em Goa, e tive oportunidade de seguir um pouco
os passos de Bocage [que também lá viveu quando estava na Marinha]. A
admiração foi-se consolidando mais e mais e mais. Comecei a fazer
exposições sobre ele, organizei a obra completa… E, bom, essa admiração
tem-se solidificado muito, tem evoluído muito.
Tem crescido?
Tem crescido, sim. Depois, como gosto muito de papelada — digo a
brincar que sou papirodependente –, comecei a investigar Bocage nos
arquivos. Era muito importante, penso eu, mudar a imagem que as pessoas
têm de Bocage ligado à pornografia, quando ele não está ligado à
pornografia, mas ao erotismo; liga-se Bocage ao anedótico, quando não se
conhece nenhuma anedota escrita dele. Conhecem-se epigramas que têm um
humor muito fino, refinado, crítico, mas não são exatamente as anedotas
que lhe atribuem. Senti necessidade de recuperar o verdadeiro Bocage e
isso só podia ser feito com trabalho de arquivo. Havia muitos hiatos na
sua biografia. Muitas interrogações, muitas explicações, que não tinham
razão de ser, que não eram assim muito pertinentes, e isso só [podia ser
resolvido] mesmo com a papelada à vista. Passei um ano na Torre do
Tombo à procura desses papéis, o processo da Inquisição, as respostas
que deu aos inquisidores, o diálogo que manteve com os censores. A obra
dele era muito avançada para a época. Ele foi a primeira pessoa em
Portugal a escrever um manifesto feminista [“Cartas de Olinda e
Alzira”]. Tomou a pele de duas mulheres e fez uma série de
reivindicações. Manifestou-se inclusivamente contra um determinado tipo
de casamento para o qual contava muito mais a situação social do que os
afetos. Era um mero contrato. E escreveu um outro manifesto [“Pavorosa
Ilusão da Eternidade”, também conhecido como “Epístola a Marília”] em
que se mostrou crítico em relação à educação e a algum fanatismo
religioso. Ele era uma pessoa religiosa.
No entanto, acusaram-no de ser ateu.
Pois, mas não tinha nada de ateu. Organizei a obra completa de
Bocage, saíram quatro volumes, e basta abrir um deles para encontrar
Deus, sei lá, algumas 30 ou 40 vezes. Ele era um deísta. Era crítico do
catolicismo da época, mas era uma pessoa crente, não há dúvida nenhuma.
Tentei lutar contra essa imagem que foi passando ao longo de 200 anos de
um Bocage que queria era boémia, mas uma boémia no mau sentido. Havia
uma boémia naquela altura que era extremamente progressista, porque era
onde as pessoas tinham acesso a livros, ao Iluminismo, a outras formas
de estar no mundo, a outras mundividências.
Fala precisamente disso no seu livro e da importância dos cafés, que ele frequentava muito.
Sim. Era nos cafés que se tinha contacto com a vida e com as pessoas,
muitas delas alternativas, com outras visões do mundo, estrangeiros que
visitavam Portugal. Os cafés tinham muitas vezes salas próprias. O
Bocage frequentava muito uma sala no Nicola chamada o “Agulheiro dos
Sábios”, porque o café, que existia no sítio onde existe atualmente [no
Rossio, em Lisboa], tinha ao lado o Botequim das Parras. [Chamava-se
assim] porque estava ornamentado com parras nas paredes. As pessoas
bebiam ponche, que era a bebida favorita de Bocage, e outras bebidas
espirituosas, e simultaneamente mantinham um diálogo bastante frutífero e
construtivo relativamente à sociedade. E por vezes também destrutivo.
Era uma espécie de tertúlia.
Exato. Ele era um poeta diferente. Publicava livros, e publicou
bastante na época, mas também vendia poesia na rua — e pouca gente lha
comprava. Era diferente, remava contra a maré. Não seria fácil para ele
singrar naquela sociedade. De facto, manteve-se sempre à parte e pagou
caro por isso.
Uma coisa que refere nesta biografia, e que está relacionada com
essa iniciativa de vender a sua própria poesia na rua, é a questão da
democratização da poesia, para a qual Bocage contribuiu.
Exatamente. Mais ou menos até Bocage, a poesia era dita somente em
dois lugares: nos salões da nobreza — e houve salões muito importantes,
por exemplo os salões da marquesa de Alorna, que iniciaram Alexandre
Herculano na literatura — e também naquilo a que se chamava as grades,
ou seja, havia poesia nos conventos. Para não haver confusões, as
pessoas de fora que iam assistir a estas sessões ficavam separadas das
freiras por grades e chamava-se então as grades.
A família de Bocage é conhecida pelas personagens ilustres. O avô dele era um oficial de Marinha muito famoso.
Muito famoso! Bocage era filho de um jurista [José Luís Soares de
Barbosa] e de uma senhora [Mariana Lustoff du Bocage] que era filha de
um vice-almirante francês chamado Gille Hedois du Bocage, que veio de
França no final do século XVII para organizar a nossa Marinha. Tínhamos
problemas gravíssimos com corsários e piratas. Os piratas atacavam-nos
no alto mar e saqueavam e afundavam os nossos navios, que vinham
sobretudo do Brasil, mas também de Angola; os corsários, ao serviço da
coroa inglesa e holandesa, atacavam os nossos navios. O avô de Bocage,
como era um oficial de Marinha muito experimentado, desempenhou um papel
muito importante nessa organização, até mesmo combatendo. Ele era
normando, mas combateu os franceses no Rio de Janeiro quando atacaram a
cidade e exigiram resgates. Já com alguma idade, casou em segundas
núpcias com uma senhora, Clara, que era filha do cônsul holandês
[Leonardo Lustoff. A Holanda era um país muito importante na época,
muito poderoso, e entrou guerra connosco, tomou-nos algumas cidades do
Brasil. Perdemos, então tivemos de pagar uma indemnização de guerra, que
foi paga com sal de Setúbal, que era famosíssimo no mundo. O pai da mãe
de Bocage era um cônsul [em Setúbal] que controlava o pagamento da
indemnização de guerra.
Nesta altura, viviam muitos estrangeiros em Portugal. A família de Bocage é um exemplo disso mesmo.
Portugal era muito importante, era uma potência. Aqui chegavam os
navios vindos do Brasil que depois saíam de Lisboa para a Flandres, onde
a carga era distribuída pela Europa. Lisboa era uma cidade cosmopolita,
muito rica.
O avô de Bocage foi uma figura respeitada, com uma carreira de
sucesso. O mesmo não se pode dizer do pai do poeta, que, tal como o
filho, também teve uma vida atribulada. Foi acusado de fraude, de
desviar dinheiro, e acabou na miséria.
Ele estudou com aquele que veio a ser o primeiro-ministro do reino
durante bastante tempo, José Seabra da Silva, que foi quem protegeu
Bocage. Seabra da Silva deve ter tido alguns problemas de consciência.
Bocage era frequentador assíduo do Nicola, no Rossio. |
Como não pôde ajudar o pai, ajudou o filho?
Exato. Havia um grupo de três amigos da vida airada em Coimbra, que
fizeram o curso de Cânones. Todos se tornaram figuras muito importantes,
excluindo o pai de Bocage. Um deles era António da Silva e Sousa, que
chegou a ser compadre de Bocage, porque era padrinho de uma das suas
filhas [Maria Agostinha]. Era muito importante e foi colocado como
administrador da Casa do Infantado, que existia para nivelar o estatuto
dos filhos nascidos fora do casamento com o dos príncipes reais. A Casa
do Infantado vivia dos impostos, da dízima [e o pai de Bocage tornou-se
em 1764 responsável por receber esses impostos em Beja]. Em 1768, ele
entregou o produto dessa dízima a António da Silva, que era uma pessoa
com ascendência nobre importante e grande amigo do rei. O rei era o
marido de D. Maria I, D. Pedro III. Era um rei muito permeável a cunhas e
não ficou com boa fama. António da Silva aceitou no primeiro ano [em
que José de Barbosa ocupou o cargo de ouvidor] a dízima e entregou na
Casa do Infantado o que o pai de Bocage lhe deu, mas no segundo ano
esqueceu-se e meteu o dinheiro no bolso. [José de Barbosa foi acusado de
fraude,] houve um arresto de todos os bens e a mãe de Bocage morreu de
um desgosto incrível. A casa, a mobília, as almofadas — foi tudo
arrestado.
Todo esse património pertencia à família dela.
Sim, tudo o que foi arrestado pertencia à família dela. Aliás, a casa
ainda nem tinha sido dividida por ela e pela irmã, mas as finanças
arrestaram tudo, inclusivamente o que era da irmã. E, bom, o pai de
Bocage foi preso. Esteve na mesma prisão que o filho. Sete anos. Setúbal
não era cidade, era uma pequena vila, sabia-se tudo, e sofreu esse ônus
a vida inteira, o de o pai ter sido preso por alegadamente ter roubado.
[José de Barbosa] nunca mais conseguiu fazer nada. Era funcionário
público, era ouvidor e juiz de fora, foi impedido de exercer e dominado
pelo desgosto e pela depressão. O filho acabou por sair da vila de
Setúbal.
Era um peso não ser primogénito.
Ainda naquele tempo?
Sim. Começava-se a lutar contra isso,
saíram algumas leis, mas uma lei é uma coisa, mudar a cabeça das pessoas
é outra. Tanto que o irmão mais velho, que se chamava Gil como o avô,
fez o curso de Direito em Coimbra. Chamava-se curso de Leis na altura.
Não havia dinheiro para Bocage ir e ele não fez curso superior nenhum.
Tinha o equivalente ao ensino secundário.
Mas uma educação que parece ter sido bastante sólida.
Sim, bastante.
Tinha, aliás, um ótimo conhecimento do latim. Fez várias traduções.
É verdade. E traduzir como traduziu. E todas as alusões mitológicas, à
história romana e grega, toda aquela cultura, de facto era preciso ter
tido uma boa formação.
Um dos seus autores favoritos era precisamente um poeta latino, Ovídio.
Os Amores de Ovídio era o seu livro de cabeceira.
Que ele também traduziu.
Sim. Agora as traduções já são um bocadinho mais conhecidas. Tentei
divulgar este aspeto ao máximo, porque é muito injusto não se falar dele
como tradutor. Ele teorizava sobre as notas que fazia, que eram, ao fim
e ao cabo, um tratado de tradução. Fazia isto sistematicamente.
Ia refletindo sobre a tradução à medida que a ia fazendo?
Exato. E ia também dialogando com o leitor. Isto foi inédito. Esta
metodologia não era nada frequente na época. E era de facto um grande
poeta. Para traduzir grandes poetas como Homero, Vergílio, Ovídio, como
disse, Voltaire, embora Voltaire não fosse grande poeta, era mais
filósofo, era preciso ser um grande poeta. Se não fosse bom,
dificilmente teria conseguido fazer uma tradução pertinente.
Falámos há pouco que Bocage teve de procurar uma carreira
alternativa por não ser o filho mais velho. Alistou-se então na Marinha,
apesar de ser evidente que não era vida para ele.
Era um elefante numa loja de loiças, não acha? [Risos].
Desertou tantas vezes!
Não tinha vida para aquilo [risos].
Mas ainda assim insistiu. Desertou, mas regressou sempre.
Sim, voltou sempre.
Quando regressou definitivamente a Portugal, depois de uma série
de aventuras no Oriente, parecia vir decidido a deixar essa vida para
trás e a dedicar-se inteiramente à escrita. Começou a publicar assim que
chegou.
Era um pouco como o ar que respirava. Acho que a poesia era como
oxigénio para ele. E depois sofria muito… Os escritores são um bocado
vaidosos, e ele era, mas os outros não o eram menos. Começaram a
disparar uns contra os outros e perdiam todos a razão, claro. Se calhar
poderá dizer-se que tinha uma centena de amigos e que teve uma dezena de
inimigos.
Aliás, ele fez imediatamente uma série de inimigos assim quando
chegou a Lisboa, sobretudo quando entrou para a Academia de
Belas-Letras.
Ele implodiu aquela academia. Foi muito atacado, mas também atacou.
Foi de parte a parte. Só que as pessoas da Academia de Belas-Letras
estavam junto do poder, tinham os seus protetores, e ele estava sozinho.
Conseguiram publicar muitos poemas contra Bocage, normalmente, em
livro, e ele não o podia fazer porque a censura não o deixava passar.
Aquele que era talvez o seu maior inimigo, Belchior Curvo Semedo, chegou
a assinar poemas muito comprometedores politicamente com o nome de
Bocage. Queimou-o muito.
O Nicola tem hoje uma estátua de Bocage |
Foi assim que acabou na prisão do Limoeiro.
Pois, foi denunciado e foi parar ao Limoeiro. Para mim, o melhor
capítulo do livro é capaz de ser mesmo esse, porque acho que aí a
realidade ultrapassou a ficção. O governo e as pessoas no poder
dividiam-se. Uma fação dizia que era só poesia, mas outra, que incluía
algumas pessoas que estavam no governo e outras da primeira e segunda
nobreza que estavam assustadíssimas com a Revolução Francesa, dizia que
Bocage era apologista da revolução e tinha de ser punido exemplarmente. E
ele era admirador de alguns dos princípios — liberdade, igualdade,
fraternidade. Era um jogo da corda — uns queriam prendê-lo e puni-lo e
outros queriam libertá-lo. Quem o queria libertar eram Seabra da Silva
[companheiro de José de Barbosa em Coimbra], o primeiro-ministro, e
outras pessoas que estavam mais ou menos ligadas à Maçonaria — o Rodrigo
de Sousa Coutinho, que era ministro, e o Luís Pinto Balsemão, que
também era ministro. Na outra fação estava Pina Manique, que era o
intendente geral da polícia. Tinha um poder imenso e só prestava contas à
rainha, D. Maria I. E nessa altura já nem à rainha, porque tinha
enlouquecido. Pina Manique queria mesmo prendê-lo e puni-lo. E punição
nesta altura já não dava fogueira, mas 20 anos antes dava. Mesmo assim,
acho que Bocage arriscou muito.
Porque é que acha que o fez? Não teria completa noção das
consequências, seria até talvez um pouco ingénuo? Ou era simplesmente
corajoso?
Era um pouco de tudo isso. Também era corajoso, mas acima de tudo
tinha sangue na guelra. Havia uma coisa que eram os “moscas”, agentes
políticos que ouviam aquilo que as pessoas diziam [nos locais públicos,
como os cafés e casas de pasto]. Apresentavam relatórios a Pina Manique e
as pessoas eram presas. Os “moscas” devem ter tido um papel importante
na sua prisão. Mas não foi só isso: esteve aqui um grande homem, um
grande cientista e inovador, um iluminista na verdade, que se chamava
[Vincenzo] Lunardi.
Um cientista e iluminista aventureiro chamado Lunardi (e como levou à primeira prisão de Bocage)
Lunardi foi muito mal tratado durante o tempo que esteve em Portugal.
Pois foi. E foi preso pelo Pina Manique, que olhou para ele e disse:
este homem das duas uma, ou fez um pacto com o demónio, porque se Deus
quisesse que o homem voasse tinha-lhe dado asas e não de, ou então
pertence à Maçonaria. E sabe que acertou 50%?
Porque pertencia à Maçonaria?
Sim [risos].
Ou porque tinha feito um pacto com o demónio?
Não [risos], pertencia à Maçonaria. Pina Manique prendeu Lunardi, que
era amigo de Bocage. Lunardi foi o primeiro homem a descolar de balão
aerostático em Itália, Inglaterra, Escócia e Espanha. Depois veio para
cá.
Era uma vedeta com fama internacional.
Era mesmo. Era uma pessoa com uma grande beleza física. As meninas
caíam todas por ele e tinha um sucesso incrível — assim rezam as
crónicas. Chegou aqui, o Pina Manique desconfiou dele e prendeu-o. Ele
sofria bastante de ansiedade, subir num balão nesta altura era uma coisa
muito complicada. Houve até muitos aeronautas que não conseguiram
descer e foram levados. Era uma angústia muito grande que o Lunardi
também interiorizou muito. Aqui em Portugal ficou várias vezes doente.
Mas o Pina Manique não acreditava na doença dele.
Mas ele apresentou vários atestados passados por médicos da câmara da
rainha. Pina Manique dizia sempre nos relatórios que era um mentiroso,
que estava a fingir. Prendeu-o e tratou-o de facto mal. O Bocage como
era muito amigo, até da boémia, escreveu um poema criticando o Pina
Manique sem citar o nome. Não se podia citar nomes de governantes. A
teoria era a de que Deus tinha dado o poder ao rei, neste caso à rainha,
e a rainha tinha usado esse poder e nomeado ministros, que não podiam
de maneira alguma ser criticados nessa altura. Pina Manique viu
perfeitamente que a crítica era para ele. Era bastante forte, falava na
ignorância daqueles que não são sensíveis para a ciência, que prendem
pessoas. Então o Pina Manique pensou: à volta cá te espero. E esperou
mesmo. Em 1797, prendeu-o. Foi entregue à Inquisição. Foi muito bem
tratado pela Inquisição, na realidade. Foi para São Bento, para o
mosteiro dos Beneditinos, na atual Assembleia da República. Por trás
disto esteve sempre o futuro D. João VI. Simpatizava bastante com Bocage
e foi ele que deu a ordem a Pina Manique para que fosse reeducado [nos
Beneditinos] e que se acabasse aqui [o caso].
Bocage voltou a ser preso.
Voltou a ser preso por pertencer à Maçonaria.
Essa detenção é muito curiosa. Foi denunciado pela filha de um amigo, Roque Ferreira Lobo.
Ele era muito amigo de Roque Lobo. Inclusivamente, mais tarde, houve
uma filha, irmã da que o denunciou, que faleceu e Bocage escreveu-lhe
uma elegia. Nesta altura, a Maçonaria estava muito divulgada. No
governo, Sousa Coutinho, Luís Pinto de Balsemão, muitos médicos, muitas
pessoas do clero regular, das ordens religiosas, e secular, que
confessavam a família real, elementos da burguesia, muitos oficiais do
exército [pertenciam]. E acima de tudo convém dizer que a Maçonaria
nesta época não era de maneira nenhuma “a teia”, como muita gente diz
hoje. Aliás, para se entrar era sempre fazer um juramento ao rei. O que é
que havia de tão apelativo que levava muita gente à Maçonaria? Era a
liturgia poderosíssima, que contrastava muito com a liturgia do
catolicismo, que tinha muito menos vivacidade e que de alguma forma não
era tão apelativa. Depois havia o mistério, o sentido do proibido. Isso
também leva as pessoas. Era tudo feito com grande secretismo porque, até
1760, as pessoas eram torturadas e queimadas em autos de fé por
pertenceram à Maçonaria. Houve bulas de dois papais contra a Maçonaria.
De facto, Bocage nunca compactuou [com os poderes estabelecidos]. Penso
que, com o seu talento todo, seria fácil para singrar, ser rico, ter um
lugar muito importante na sociedade.
Esse talento chegou a ser reconhecido em vida?
Houve uma parte [da sociedade] que o reconheceu. Considerava-se que
não era um bom exemplo para a juventude. Andava mal vestido, a vender os
poemas na rua, se calhar lançava os seus piropos às meninas… E depois a
poesia menos convencional que distribuiu pela clandestinidade, não se
casou, frequentava os bares…
Não era uma figura recomendável?
Não. Havia muitas pessoas que não o queriam ver como genro [risos].
Nem por perto.
Exatamente! [Risos].
Considera então que foi o facto de ele não ser um conservador numa
época conservadora que ditou um reconhecimento apenas parcial da sua
obra e também muitas das tragédias que acabaram por lhe acontecer?
Acho que é isso mesmo. Não era fácil. Teve uma vida… Aparece-lhe aquela doença aos 40 anos.
Ele que sempre teve uma saúde frágil.
Sim, muito frágil. O sistema nervoso também o seria. Tinha muitos
amigos e muitos inimigos, muita insegurança, alimentação mais que
precária, o aneurisma que lhe apareceu, galopante… Acabou por ter um
funeral que foi pago pelos amigos, especialmente por um poeta
setubalense, o deputado António dos Santos Silva. Mas depois houve o
problema de ter acabado, olhe como Mozart, numa vala comum.
Uma vala comum na Igreja de Nossa Senhora das Mercês que já não existe.
Exatamente.
Até porque, quando Bocage morreu, ainda não tinham sido criados os
primeiros cemitérios em Lisboa. Isso só aconteceu no século XIX.
Em 1834, nasceu o Cemitério dos Prazeres e a partir daí começou a ser
proibido sepultarem-se as pessoas nos adros das igrejas, que foi o que
aconteceu com Bocage. Foi enterrado numa pequena sepultura que não
estava identificada. No final do século XIX, houve um industrial de
carruagens que estava a montar uma fábrica e que comprou todo o terreno
[do cemitério da Igreja das Mercês, que ficava entre a Rua dos Caetanos e
a Rua Luz Soriano, depois de este ter deixado de ser utilizado]. Quando
quis construir a fábrica, foi avisado pela população mais idosa que
estavam ali sepultados escritores, entre eles Bocage, que era melhor
avisar a Câmara. E ele avisou, só que a Câmara demorou meses, meses e
meses a dar uma resposta. Ele tinha mesmo de ultimar a fábrica e acabou
por remover os restos mortais daquelas pessoas todas. Acho que também lá
estava o [Nicolau] Tolentino [de Almeida] e outros.
Parece que até na morte Bocage se aproximou de Camões, uma figura que admirava muito.
O paralelismo é bem feito. Eram marinheiros, andaram pelo Oriente,
Macau, talvez pela China, a poesia, os amores… Não foram muito felizes
nos amores, de facto. Poetas geniais, a própria miséria que terão
vivenciado… Há vários pontos, é verdade.
Bocage foi enterrado numa vala comum do cemitério da Igreja de Nossa Senhora das Mercês, que jánão existe. |
Quando é que se deu o reconhecimento da sua obra?
Diria que teve o seu mérito reconhecido nos últimos dez anos de vida,
entre 1794 e 1805. Havia muita gente que na realidade reconhecia o seu
mérito mas que não o podia dizer porque existia uma transgressão no seu
quotidiano. Isso impedia muita gente que apreciava a sua poesia de o
manifestar.
Foi então já depois da sua morte que ele foi realmente consagrado enquanto poeta.
Sim. Entretanto houve a ida da corte portuguesa para o Brasil, porque
os franceses invadiram Portugal. O aparelho de Estado enfraqueceu e foi
possível ir publicando uma série de poemas que a censura antigamente
não deixava passar. Foram publicadas as obras mais ou menos completas.
Depois houve um hiato em termos de publicação e, em 1853, houve um
grande homem, literato e intelectual chamado Inocêncio Francisco da
Silva, que publicou pela primeira vez a obra completa de Bocage em seis
volumes. Depois, olhou para aquilo, e viu que faltavam os poemas
eróticos, os poemas crítico-sociais, os satíricos mais incisivos. Então o
que é que ele fez? Como era funcionário público e não podia assinar o
chamado sétimo volume, saiu anónimo com essa poesia toda. A poesia
erótica de Bocage só foi publicada 50 anos depois de ter morrido.
E houve outra coisa que costumo sempre dizer e que escrevo sempre que
posso: quando saiu a poesia erótica, Inocêncio Francisco da Silva
deparou-se com um caderno de 50 poemas que dizia “poesia erótica de
Manuel Maria Barbosa du Bocage e de Pedro José Constâncio” e que os
reproduzia sem por os nomes de cada um deles. Não se sabia quem é que
tinha escrito o quê. Constâncio era uma pessoa que tinha problemas
mentais provocados pela sífilis, mas era um bom poeta e discípulo em
termos poéticos de Bocage. Imitava muito bem aquilo que Bocage escrevia.
Aquilo que se conhece dele é só poesia pornográfica, mas
verdadeiramente pornográfica. O Inocêncio, não sabendo destrinchar o que
era de um e o que era de outro, pôs tudo nas poesias eróticas de Bocage
e deixou uma nota [a explicar].
O que me fez alguma espécie foi como é que uma pessoa que escreveu um
manifesto feminista [“Cartas de Olinda e Alzira”], que reivindica o
prazer da mulher, que fala de casamentos de conveniência à revelia dos
afetos, que defendeu o estatuto da mulher de forma tão energética
escreveu poemas tão pornográficos que são, ao fim e ao cabo, a
instrumentalização boçal da mulher? Não bate a bota com a perdigota. O
que fiz antes de publicar a obra completa foi correr todos os arquivos e
acabei por encontrar os poemas pornográficos que são atribuídos a
Bocage, que estão na Biblioteca Municipal do Porto com o nome de Pedro
José Constâncio. Um mais um são dois. Então, quando publiquei o volume
3, o das eróticas, pedi que dividissem os poemas em três partes, com
separadores a dividir o que é, o que não é e o que talvez seja de
Bocage.
Começou por dizer que Bocage era um poeta à frente do seu tempo. Porquê?
Para já, porque era pré-romântico. A poesia dele está muito além
daquilo que era convencional escrever-se, já pronuncia o Romantismo. Por
outro lado, os valores [que defendia,] em termos de democracia, de
liberdade, eram também diferentes da época. Num dos manifestos que
escreveu, o iluminista [“Pavorosa Ilusão da Eternidade”], criticou a
ausência de liberdade, a forma como os homens eram educados e também
algum fanatismo religioso que havia na sociedade. Ele era a favor de uma
religião, sem dúvida nenhuma, mas de uma religião mais libertadora do
que aquela que existia na época. Ele pagou por isso. Não há dúvida de
que pagou por isso.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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