Armínio Fraga
Folha
Um dos grandes desafios do mundo pós-Covid-19 está no financiamento do setor público. As demandas são imensas, e os recursos, escassos. Sem surpresa, como sempre, não há consenso entre economistas quanto às soluções. Há quem defenda que, para um país que emite sua própria moeda, o risco de um default na dívida pública não existe, pois sempre é possível emitir para quitar a dívida. Não é claro para mim quem compraria a dívida de um país que adotasse essa política. Parece mais ameaça do que conforto.
Uma versão mais sofisticada afirma que se a economia crescer mais rapidamente do que a taxa de juros que incide sobre a dívida, as receitas tributárias crescerão mais do que a conta de juros, tornando possível conviver com um endividamento elevado sem grandes preocupações.
JUROS BAIXOS – A inspiração vem de fora. As taxas de juros pagas pelos governos das economias avançadas vêm caindo há cerca de 40 anos, chegando às impensáveis taxas negativas praticadas hoje em alguns países. Além disso, países estáveis, com histórico de bons pagadores, podem se endividar com prazo longo.
Japão, Estados Unidos e alguns países europeus (apoiados pelo Banco Central Europeu) captam recursos por prazo de dez anos a taxas nominais próximas de zero. Essas condições têm viabilizado expressivos aumentos de endividamento, para dar apoio às suas economias em tempos de crise como os atuais.
Faz sentido… para eles. Mas, mesmo para as economias maduras, essa política tem limites: (i) não há garantia de que a taxa de crescimento ficará sempre acima da taxa de juros; (ii) não permite déficits públicos continuados; (iii) tampouco dívidas muito elevadas, sob pena de se ficar sem espaço para lidar com novas crises.
PLANO DO DELÍRIO – Essa é uma alternativa disponível para o Brasil? Parece-me que não. Acho mesmo que está no plano do delírio apostar que o governo brasileiro, com suas finanças precárias e seu histórico de inflação, confiscos e moratórias, poderia ser merecedor de tanto crédito. Cabe então buscar entender até onde o Brasil pode/deve se endividar.
É fato que as taxas de juros aqui nunca estiveram tão baixas, em parte cortesia da depressão econômica que estamos vivendo. No entanto, as taxas de juros para prazo de dez anos pagas pelos governos do Brasil e dos principais países de renda média estão em torno de 5% a 7% ao ano, sendo as nossas em 7%.
Essa significativa diferença em comparação com os países avançados espelha o medo por parte dos credores do não pagamento da dívida no seu vencimento, seja pela via da inflação, seja por restruturação ou calote. Como a dívida hoje é denominada em real, mais provavelmente a perda seria imposta pela inflação.
SEM CREDIBILIDADE – Uma justificativa para um governo aumentar seu endividamento seria usar os recursos para investir em projetos com bom retorno.
Entretanto, seja qual for o destino do gasto, a obtenção do financiamento adequado exige muita credibilidade, pois tipicamente os retornos vêm a longo prazo.
Imaginem que um governo com as finanças desorganizadas, que investe pouco e mal, resolva aumentar seu endividamento para fazer investimentos (presume-se que de alto retorno, por alguma métrica). Dá para acreditar? Por que não priorizou o investimento antes, se era tão bom? Tais promessas de bom comportamento não costumam ser críveis.
CRISES CAMBIAIS – Mesmo quando se investe e bem, problemas podem surgir. Estudo há décadas as crises cambiais. O uso dos recursos emprestados importa menos do que se imagina.
Países que entraram em crise se endividaram para financiar consumo (México, em 1995) e gasto público (Brasil, em 1999), mas também investimento (Brasil, anos 1970, Ásia nos anos 1990). Minha conclusão é: o uso dos recursos para investimento não garante blindagem.
Uma condição necessária para que ocorra uma crise é que o endividamento seja grande e de curto prazo. Se for em moeda estrangeira, pior ainda. Mesmo em moeda nacional, pode haver corrida para o dólar e/ou inflação.
RISCO NA ROLAGEM – Um sinal de que o mercado já está pressionado no Brasil é a queda do prazo médio da dívida pública de um pico de 4,5 anos em 2016 para os 3,7 anos atuais. Tal queda em geral reduz o custo da dívida — é o caso hoje — mas ao encurtar o prazo dos vencimentos aumenta o risco de problemas com a rolagem da dívida.
As necessidades de financiamento do governo neste ano (a soma do déficit público com as amortizações de dívida do ano) devem chegar a 46% do PIB, cerca de 1,7 vez as reservas internacionais. Até a recessão que começou em 2014-15, esse número oscilava entre 20% e 25%.
Minha avaliação é que estamos em zona de alto risco. Uma surpresa negativa interna ou externa pode detonar uma crise macroeconômica de enormes proporções, sobretudo dado que a economia ainda se encontra muito debilitada. Já passamos do ponto de acumular dívida.
O QUE FAZER? – Resta muito pouco espaço para cortes no orçamento. As demandas de gastos ligados à pandemia devem adentrar o ano que vem.
Não vejo solução sem algum aumento da carga tributária pela via da eliminação dos elementos regressivos do Imposto de Renda e sem as reformas de longo prazo da Previdência e do Estado, como venho defendendo aqui desde antes da pandemia.
Não há por que temer um aprofundamento da recessão porque tais reformas não teriam impacto imediato e porque há muito espaço para uma recuperação clássica do consumo e do investimento, considerando que haja aumento na confiança.
MEDO DO QUE PODE VIR – Lamentavelmente, parte expressiva das incertezas que hoje paralisam a economia são de cunho político e levam a crer que as reformas não ocorrerão. Dá medo pensar no que pode vir por aí.
Existe alguma saída através da emissão de moeda? Na era digital, boa parte do estoque de moeda rende juros. A política monetária é conduzida através da fixação da taxa de juros de curto prazo. Não existe mais a emissão monetária dos livros-texto antigos, onde se emitia uma moeda que não pagava juros e que nunca saía de circulação.
Emitir moeda na prática equivale a emitir dívida com prazo bem curto, para financiar gastos ou compras de ativos (essa é a essência das operações de QE, “quantitative easing”). Não é solução.
PRAZO DA DÍVIDA – No caso do Brasil, não há qualquer objeção conceitual a levar a taxa de juros a zero e até mesmo a praticar um QE típico, se for para atingir a meta de inflação. Mas não parece provável que ocorra.
Como discutido, o crescimento desenfreado da dívida pública vem provocando um perigoso encurtamento de seu prazo médio. Essa alternativa é a opção disponível neste momento de pandemia.
É uma opção para ganhar tempo. Se nada de mais fundamental for feito, terá sido apenas tempo perdido.
Folha
Um dos grandes desafios do mundo pós-Covid-19 está no financiamento do setor público. As demandas são imensas, e os recursos, escassos. Sem surpresa, como sempre, não há consenso entre economistas quanto às soluções. Há quem defenda que, para um país que emite sua própria moeda, o risco de um default na dívida pública não existe, pois sempre é possível emitir para quitar a dívida. Não é claro para mim quem compraria a dívida de um país que adotasse essa política. Parece mais ameaça do que conforto.
Uma versão mais sofisticada afirma que se a economia crescer mais rapidamente do que a taxa de juros que incide sobre a dívida, as receitas tributárias crescerão mais do que a conta de juros, tornando possível conviver com um endividamento elevado sem grandes preocupações.
JUROS BAIXOS – A inspiração vem de fora. As taxas de juros pagas pelos governos das economias avançadas vêm caindo há cerca de 40 anos, chegando às impensáveis taxas negativas praticadas hoje em alguns países. Além disso, países estáveis, com histórico de bons pagadores, podem se endividar com prazo longo.
Japão, Estados Unidos e alguns países europeus (apoiados pelo Banco Central Europeu) captam recursos por prazo de dez anos a taxas nominais próximas de zero. Essas condições têm viabilizado expressivos aumentos de endividamento, para dar apoio às suas economias em tempos de crise como os atuais.
Faz sentido… para eles. Mas, mesmo para as economias maduras, essa política tem limites: (i) não há garantia de que a taxa de crescimento ficará sempre acima da taxa de juros; (ii) não permite déficits públicos continuados; (iii) tampouco dívidas muito elevadas, sob pena de se ficar sem espaço para lidar com novas crises.
PLANO DO DELÍRIO – Essa é uma alternativa disponível para o Brasil? Parece-me que não. Acho mesmo que está no plano do delírio apostar que o governo brasileiro, com suas finanças precárias e seu histórico de inflação, confiscos e moratórias, poderia ser merecedor de tanto crédito. Cabe então buscar entender até onde o Brasil pode/deve se endividar.
É fato que as taxas de juros aqui nunca estiveram tão baixas, em parte cortesia da depressão econômica que estamos vivendo. No entanto, as taxas de juros para prazo de dez anos pagas pelos governos do Brasil e dos principais países de renda média estão em torno de 5% a 7% ao ano, sendo as nossas em 7%.
Essa significativa diferença em comparação com os países avançados espelha o medo por parte dos credores do não pagamento da dívida no seu vencimento, seja pela via da inflação, seja por restruturação ou calote. Como a dívida hoje é denominada em real, mais provavelmente a perda seria imposta pela inflação.
SEM CREDIBILIDADE – Uma justificativa para um governo aumentar seu endividamento seria usar os recursos para investir em projetos com bom retorno.
Entretanto, seja qual for o destino do gasto, a obtenção do financiamento adequado exige muita credibilidade, pois tipicamente os retornos vêm a longo prazo.
Imaginem que um governo com as finanças desorganizadas, que investe pouco e mal, resolva aumentar seu endividamento para fazer investimentos (presume-se que de alto retorno, por alguma métrica). Dá para acreditar? Por que não priorizou o investimento antes, se era tão bom? Tais promessas de bom comportamento não costumam ser críveis.
CRISES CAMBIAIS – Mesmo quando se investe e bem, problemas podem surgir. Estudo há décadas as crises cambiais. O uso dos recursos emprestados importa menos do que se imagina.
Países que entraram em crise se endividaram para financiar consumo (México, em 1995) e gasto público (Brasil, em 1999), mas também investimento (Brasil, anos 1970, Ásia nos anos 1990). Minha conclusão é: o uso dos recursos para investimento não garante blindagem.
Uma condição necessária para que ocorra uma crise é que o endividamento seja grande e de curto prazo. Se for em moeda estrangeira, pior ainda. Mesmo em moeda nacional, pode haver corrida para o dólar e/ou inflação.
RISCO NA ROLAGEM – Um sinal de que o mercado já está pressionado no Brasil é a queda do prazo médio da dívida pública de um pico de 4,5 anos em 2016 para os 3,7 anos atuais. Tal queda em geral reduz o custo da dívida — é o caso hoje — mas ao encurtar o prazo dos vencimentos aumenta o risco de problemas com a rolagem da dívida.
As necessidades de financiamento do governo neste ano (a soma do déficit público com as amortizações de dívida do ano) devem chegar a 46% do PIB, cerca de 1,7 vez as reservas internacionais. Até a recessão que começou em 2014-15, esse número oscilava entre 20% e 25%.
Minha avaliação é que estamos em zona de alto risco. Uma surpresa negativa interna ou externa pode detonar uma crise macroeconômica de enormes proporções, sobretudo dado que a economia ainda se encontra muito debilitada. Já passamos do ponto de acumular dívida.
O QUE FAZER? – Resta muito pouco espaço para cortes no orçamento. As demandas de gastos ligados à pandemia devem adentrar o ano que vem.
Não vejo solução sem algum aumento da carga tributária pela via da eliminação dos elementos regressivos do Imposto de Renda e sem as reformas de longo prazo da Previdência e do Estado, como venho defendendo aqui desde antes da pandemia.
Não há por que temer um aprofundamento da recessão porque tais reformas não teriam impacto imediato e porque há muito espaço para uma recuperação clássica do consumo e do investimento, considerando que haja aumento na confiança.
MEDO DO QUE PODE VIR – Lamentavelmente, parte expressiva das incertezas que hoje paralisam a economia são de cunho político e levam a crer que as reformas não ocorrerão. Dá medo pensar no que pode vir por aí.
Existe alguma saída através da emissão de moeda? Na era digital, boa parte do estoque de moeda rende juros. A política monetária é conduzida através da fixação da taxa de juros de curto prazo. Não existe mais a emissão monetária dos livros-texto antigos, onde se emitia uma moeda que não pagava juros e que nunca saía de circulação.
Emitir moeda na prática equivale a emitir dívida com prazo bem curto, para financiar gastos ou compras de ativos (essa é a essência das operações de QE, “quantitative easing”). Não é solução.
PRAZO DA DÍVIDA – No caso do Brasil, não há qualquer objeção conceitual a levar a taxa de juros a zero e até mesmo a praticar um QE típico, se for para atingir a meta de inflação. Mas não parece provável que ocorra.
Como discutido, o crescimento desenfreado da dívida pública vem provocando um perigoso encurtamento de seu prazo médio. Essa alternativa é a opção disponível neste momento de pandemia.
É uma opção para ganhar tempo. Se nada de mais fundamental for feito, terá sido apenas tempo perdido.
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