A ignorância e a incerteza, prévias à sua corrupção pelo interesse
político, são constitutivas da ciência. E esta pandemia devia permitir
que tomássemos consciência deste aspecto fundamental. Artigo do
professor Paulo Tunhas para o Observador:
Para o bem e para o mal, não tenho, nem nunca tive, twitter,
facebook, instagram ou qualquer coisa assim. Não me estou a gabar de
nada. Acontece apenas que, por razões óbvias, ignoro o que perco e sei
muito bem, conhecendo a minha facilidade em viciar-me, aquilo que ganho e
é cada vez mais precioso: tempo. Leio, no entanto, alguns poucos blogs –
sempre os mesmos –, muitas vezes com proveito. Os blogs foram, quando
apareceram, como se diz, um “espaço de liberdade”. E muitos continuam a
sê-lo, sobretudo quando se aproveitam dessa óptima possibilidade que são
os textos curtos e incisivos.
Vem esta pouco interessante confidência a propósito de algo que li no
outro dia num dos blogs que visito regularmente, O Insurgente, onde
encontrei um post de Rui Rocha, “As melhores frases durante/sobre a crise pandémica”.
Como o título indica, trata-se de uma antologia de frases proferidas
nestes últimos meses, uma antologia susceptível de uma actualização
quase diária: basta pensar nas recentes declarações de António Costa
sobre o tratamento do coronavírus pelos antibióticos ou no auto-elogio
da Dra. Graça Freitas sobre a “coerência” da DGS, em presumível resposta
a um sacudir da água do capote por parte de um dos candidatos a
sucessor do Dr. Costa à frente do PS, Fernando Medina.
Mas, por mais incompleta que seja a lista, ela dá-nos
indiscutivelmente uma boa ideia da atmosfera geral de confusão em que
vivemos. Quando foi declarado o estado de emergência, escrevi aqui que
essa confusão era, em larga medida, inescapável e que ela relevava, pelo
menos em parte, de uma fragilidade generalizada por todos partilhada.
Não mudei completamente a minha opinião, mas hoje em dia tenderia a
julgá-la declaradamente insuficiente. Há demasiados traços que nos levam
necessariamente mais além de uma tal explicação. Há mesmo uma criação
de caos que ilustra um modo de acção singular do espírito humano e que
está longe de se deixar por inteiro reduzir à tal fragilidade.
As frases citadas n’O Insurgente podem ser divididas em vários
tópicos: a incerteza e a ignorância; a preocupação de servir o governo; a
pura e simples idiotice; o delírio; o descaramento; a alarvidade; a
mentira; e a pseudo-habilidade. Como é fácil de imaginar, nenhum destes
tópicos é estanque e uma frase pode conter em si vários deles simultânea
e harmoniosamente.
Por razões várias, o tópico filosoficamente mais interessante é o da
incerteza e da ignorância. Estou muito longe de querer transformar a
Dra. Graça Freitas numa espécie de bode expiatório da nossa desventura
colectiva, mas a verdade é que ela, em virtude da posição que ocupa e da
exposição pública que é a sua, fornece um vasto número de exemplos
daquilo a que me refiro. (Convém no entanto notar que aquilo que ela
disse foi em geral dito também por outras figuras menores deste
período.)
Senão vejamos. Em tempos idos, declarou: “Há baixíssima probabilidade
de vírus em Portugal. A OMS está a exagerar um bocadinho”. Disse
também: “Apelo para que visitem os lares: sejam solidários”. É de
admitir que estas duas frases testemunham apenas de um estado de
ignorância que é a consequência natural da incerteza cognitiva. A
ministra da Agricultura, Maria do Céu Albuquerque, exprimiu uma idêntica
ignorância, sob a forma de uma optimista e obscena esperança: “A
pandemia pode ser uma oportunidade para a agricultura portuguesa”. Mas
Graça Freitas usou também indiscutivelmente da incerteza e da ignorância
para servir o governo e o poder. Como toda a gente se lembra, quando
não havia máscaras em número suficiente para os profissionais da saúde,
não hesitou em desaconselhá-las à população em geral: “Não usem
máscaras. As máscaras dão falsa sensação de segurança”. Quando eram
poucos os testes: “Testes? Testes negativos dão falsa sensação de
segurança”. Quando se tratava de comemorar o 25 de Abril na Assembleia
da República: “Não é necessário usar máscara. A AR é um edifício
grande”. Quando a preocupação era tentar pôr a economia a funcionar um
pouco: “Nos aviões não é necessário distanciamento porque as pessoas só
olham para a frente”. E: “O que nós queremos é que venham muitos
estrangeiros”. Todas estas afirmações exibem o alegre convívio da
incerteza e da ignorância com a preocupação de servir o governo. Mas por
vezes acrescenta-se igualmente o delírio: “Que cada um de nós recorra à
horta de um amigo. Não açambarquem”.
António Costa, pelo seu lado, mente com facilidade – e, notam os
aficionados, com habilidade. Lembram-se? “Até agora não faltou nada no
SNS e não é previsível que venha a faltar”. Ou então, o seu velho
mantra: “Não vai haver austeridade.” Com a pequena correcção, que
contradiz o carácter taxativo da afirmação anterior: “É muito difícil
fazer previsões quando o mundo mudou em 360 graus em dois meses”. Ó
habilidade!, ó versatilidade! Mas a habilidade não é exclusivamente uma
propriedade sua. O grande debate político em Portugal centra-se numa
única questão: qual dos dois é o mais hábil – Costa ou o Presidente da
República? É que, como escreveu alguém há uns anos, comentando um
qualquer artigo do Observador, Marcelo é capaz de fazer vinte e cinco
fintas sucessivas no espaço reduzido de uma cabine telefónica – sem
depois conseguir abrir a porta e sair. Resta que é um grande
esquematista: “Já tenho um esquema para ir à praia”. Uma visão tão
lúdica das coisas não lhe tolhe, no entanto, a solenidade oportuna:
“Nesta guerra, ninguém mente nem vai mentir a ninguém. Isto vos diz e
vos garante o Presidente da República”.
Voltemos ao essencial. A ignorância e a incerteza, prévias à sua
corrupção pelo interesse político, são constitutivas da ciência. E esta
pandemia devia permitir que tomássemos consciência deste aspecto
fundamental. Um editorial de um número recente da Spectator lembra a
justo título que diferentes governos seguiram diferentes políticas
contra a pandemia seguindo conselhos distintos de vários grupos de
cientistas, que muitas vezes, de resto, foram mudando de opinião. Não há
nenhuma entidade monolítica colectivamente denominada “Ciência”. A
controvérsia – não um mágico consenso – estrutura o conhecimento
científico, mesmo que se trate de controvérsias que têm por telos um
acordo final fundado em provas objectivas. A situação presente devia
mostrar isso na perfeição. E deveria esclarecer-nos, retrospectivamente,
sobre o profundo enviesamento de muito do que se diz sobre o “consenso”
em torno do “aquecimento global”. Mas seria sem dúvida pedir demais. O
discurso político-mediático é profundamente ignorante dos processos das
ciências e das discussões encetadas pela filosofia desses mesmos
processos. Quando muito, boiam à superfície expressões como “paradigma” e
“corte epistemológico” (que, de resto, quase se confunde com o de
“chicotada psicológica” do meta-futebol das televisões). Que a ciência,
como a vida segundo Sá de Miranda, “está mal segura”, é algo que
militantemente se nega todos os dias, tal a nossa vontade de acreditar.
PS. Praticamente com as mesmas atitudes de espírito com que se
discute em Portugal a pandemia, decide-se o futuro da TAP, a nossa
“companhia-bandeira”. Tanto quanto consigo perceber, os privados
conseguiram, antes da pandemia, várias melhorias. Com a pandemia, foi,
como em todas as outras companhias aéreas por esse mundo fora, a
catástrofe. Logo apareceram, chefiados por Pedro Nuno Santos (ah, estes
aspirantes a sucessores de António Costa…), os usuais cultores da
omnipotência do Estado – com o seu misticismo, desejo de poder e de
empregos fáceis para os seus – a exigirem a sua nacionalização, tudo
isto embrulhado no mais serôdio pseudo-patriotismo, o último refúgio dos
mais acabados imbecis que se pode imaginar. Cecil Rhodes dizia que, se
pudesse, anexava as estrelas. Os “nacionalizadores”, se pudessem, como
me lembrou a minha mulher, nacionalizavam o Benfica. O que, bem vistas
as coisas, até fazia algum sentido. Pelo menos, podia-se pôr
António-Pedro Vasconcelos, um dos mais reputados especialistas em ambas
as matérias, à frente das duas gloriosas bandeiras.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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