Para os esquerdistas, "um vírus nascido num país asiático e
comunista é motivo para revermos o modo de vida ocidental. Pois é: já
que os chineses comem morcegos, nós temos de abandonar o automóvel". O
cáustico Alberto Gonçalves, em sua coluna no Observador:
Ao contrário dos milhares de especialistas em epidemiologia
recentemente revelados pelas televisões, não sei muito acerca do
coronavírus, ou deste coronavírus. Sei que nas últimas décadas houve
diversas epidemias que garantidamente devastariam a humanidade e que
apenas devastaram fortunas incalculáveis a tentar combatê-las. Das vacas
loucas à SARS original, da gripe suína à gripe das aves, passando pela
pandemia de infantilidade que é o “aquecimento global”, inúmeras
criaturas avisaram-nos inúmeras vezes para as calamidades que aí vinham.
As calamidades não vieram. O que veio foi a factura das medidas que o
medo das calamidades impôs.
A reacção ao coronavírus cumpre todas os critérios dos pânicos
anteriores: os alertas da “comunidade científica”, que beneficia
simbólica e materialmente da atenção; a histeria dos “media”, que não
perdem uma aberta para anunciar o apocalipse; a dramatização dos
políticos, que hesitantes ou eufóricos acabam por marchar ao gosto
popular e aproveitam para reforçar o poder do Estado. Face à maioria dos
pânicos anteriores, a diferença é que o coronavírus existe. E que, por
muito que duvidemos da sua capacidade aniquiladora, não estamos certos
de que seja relativamente inofensivo. Por enquanto, não conseguimos
descortinar a voracidade do bicho, e é o desconhecido que nos inquieta. E
é a inquietação que nos enfia em casa. E é o recolhimento voluntário
que nos suscita saudades desgraçadas das possibilidades que o mundo, o
mundo “habitual”, nos oferecia até há dias.
Sabem aqueles gestos diários e pequeninos, que desvalorizamos e
tomamos por garantidos? Eu nunca os desvalorizei nem tomei por nada que
não fosse um privilégio. Para mim, ir ao café ou ao restaurante, comer
um rissol de camarão na estação de serviço, duplicar a chave ou subir
uma bainha, comprar um blusão no pronto-a-vestir ou dois blocos de notas
na papelaria sempre foram actividades um bocadinho encantadas. Não
estou a brincar, juro que não. As transações comerciais têm qualquer
coisa de maravilhoso, no sentido profundo da palavra. A troco de
dinheiro, bela convenção social, há pessoas dispostas a fornecer-nos os
bens ou serviços de que precisamos ou que simplesmente nos apetece. Isto
é tão pueril que embaraça notá-lo, e tão evidente que tendemos a
desprezá-lo. Não contem comigo: durante o meio século que levo disto,
foram poucos os dias em que não reparei no carácter civilizador dessas
minudências, e em que não as agradeci devidamente. É delas que sinto
falta, e que temo vir a sentir mais.
No fundo, sinto falta do capitalismo, entendido na acepção lata e
quotidiana do termo. Por isso é que, enfiado quase permanentemente em
casa, à semelhança de tantos portugueses, espreito as “redes sociais” e
horrorizo-me, quer com os avanços da doença, quer com a quantidade de
chanfrados que acham o coronavírus um pretexto para implodir com o doce
conforto das sociedades capitalistas. Na opinião dos chanfrados, um
microrganismo nascido nas feiras de um país asiático e comunista é um
excelente motivo para revermos o modo de vida ocidental. Pois é: já que
os chineses comem morcegos, nós temos de abandonar o automóvel. Bate
certo, sobretudo quando se proferem tais preciosidades através do Galaxy
ou do MacPro, populares conquistas do marxismo.
Nas seitas de esquerda, o primeiro critério de admissão é a inveja. O
segundo é o descaramento. A inveja permite-lhes desejar a destruição da
economia, e repetir com fervor o bordão “nada voltará a ser como
antes”. O descaramento permite-lhes afirmar que a epidemia prova a nossa
dependência do sector público. Por acaso, e descontando o desnorte das
“autoridades” para efeito de alívio cómico, a epidemia tem vindo a
provar pela enésima ocasião que depender do sector público é meio
caminho andado para o desastre. Apesar dos esforços dos funcionários e
de biliões em impostos, o SNS, que ao longo de anos serviu de estandarte
heróico, é afinal uma ruína sem préstimo em situações sérias: duas ou
três centenas de casos graves e aquilo desmantela-se como a
indestrutível URSS em que alguns gostariam de nos transformar. Vale, se
nos chegar a valer, a colaboração dos hospitais privados, dos
laboratórios privados, das empresas privadas e dos cidadãos privados,
entidades essencialmente malignas e ávidas por – o Diabo seja cego,
surdo e mudo – lucro. E para aqueles que não chegarão a precisar de
cuidados médicos, vale-nos o capitalismo para manter a internet, o
streaming de filmes, os sites informativos, as “redes sociais”, o
WhatsApp, as compras “on line”, a circulação de capitais, etc.
Na verdade, o capitalismo é o que vai tornando suportável esta
clausura sem final previsto. A parte insuportável é providenciada pelo
Estado, para cúmulo de emergência. O coronavírus, que nos colocou nas
mãos dos senhores que mandam, doravante habilitados a decidir os
destinos dos indivíduos até ao ínfimo pormenor, não é uma oportunidade
para abolir o capitalismo, mas para experimentar a ausência parcial do
capitalismo, a ausência de mercado pleno, a ausência de circulação
indiscriminada, a ausência de liberdade enfim. O coronavírus, que nos
reduziu a sombras, é uma oportunidade para experimentar o socialismo a
sério. E perceber o seu imenso horror. E esperar que não dure. E ansiar,
com infundado optimismo, que tudo, apesar de tudo, volte a ser como
antes. Ou, estou a delirar, melhor que antes.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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