Em sua coluna no Globo,
Merval Pereira relembra o escritor mineiro Pedro Nava, que relatou a
experiência com a pandemia de gripe espanhola no RJ em 1918:
Pedro Nava, médico e escritor morto em 1984, foi o maior memorialista
brasileiro, autor de sete livros: Baú de Ossos, Balão Cativo, Chão de
Ferro, Beira-Mar, Galo das Trevas, O Círio Perfeito, Cera das almas,
póstumo. Em Chão de Ferro, no Capítulo II denominado “Rua Major Ávila
105”, ele relata a experiência com a pandemia da gripe espanhola no Rio
de Janeiro de 1918. Seguem alguns trechos:
“Synochus catarrhalis era o nome de uma doença epidêmica,
clinicamente individualizada desde tempos remotos e que periodicamente,
cada vez com maior extensão, assola a humanidade. Essa extensão está
relacionada à velocidade sempre crescente das comunicações. Seu contágio
já andou a pé, a passo de cavalo, à velocidade de trem de ferro, de
navio e usa, nos dias de hoje, aviões supersônicos – espalhando-se pelo
mundo em dois, três, quatro dias.
Quando passou pela Itália (na epidemia de 1802 que tão duramente
castigou Veneza e Milão), recebeu nome que fez fortuna: influenza. O
termo pegou, passou para linguagem corriqueira e lembro de tê- lo ouvido
empregado por minha avó materna, em Juiz de Fora, na minha infância – a
Dedeta não pode ir às Raithe porque está de cama com uma influenza; ou –
a Berta está calafetada dentro do quarto, de medo da influenza.
O nome gripe vem do meio do século passado e foi primeiro empregado
por Sauvages, de Montpellier, tendo em conta o aspeto tenso, contraí-do,
encrespado, amarrotado – grippé – que ele julgou ver na cara de seus
doentes. Parecendo ser da entidade em questão, a literatura médica está
cheia da descrição de surtos epidêmicos de que alguns assumiram aspeto
pandêmico, assolando todas as grandes aglomerações humanas, como o de
1733, que marca a primeira passagem oceânica de mesma epidemia propagada
da Europa à América; os de 1837, 1847, 1889 e finalmente o de 1918 que
varreu o mundo, causando maior número de mortes que a Primeira Grande
Guerra. (...)
Seu nome de batismo foi Influenza espanhola ou mais simplesmente Espanhola. (...)
Ela nasceu da influência, desta coisa imprecisa, desprezada pelos
modernos mas entretanto existente – que são as coincidências telúricas,
estacionais e atmosféricas responsáveis pela chamada constituição médica
de determinadas doenças no tempo. (...) Pois sínoco de catarro,
influenza, gripe ou como queiram chamá-la – a espanhola instalou-se
entre nós em setembro, cresceu no fim desse mês e nos primeiros do
seguinte. (...) Tornou-se calamidade de proporções desconhecidas nos
nossos anais epidemiológicos nos dias terríveis da segunda quinzena de
outubro e sua morbilidade e mortalidade só baixaram na ainda trágica
primeira semana de novembro.
Comecei a sentir o troço numa segunda-feira de meados de outubro em
que, voltando ao colégio, encontrei apenas onze alunos do nosso terceiro
ano de quarenta e seis. Trinta e cinco colegas tinham caído gripados de
sábado para o primeiro dia da semana subseqüente. Chegamos ao colégio
às 9 horas. Ao meio-dia, dos sãos, entrados, já uns dez estavam
tiritando na Enfermaria e sendo purgados pelo Cruz. À uma hora o Diretor
Laet, o Quintino, o médico da casa, o Leandro e o Fortes passaram
carrancudos nos corredores e foram se trancar no Salão de Honra.
Às duas, assistíamos a uma aula do Thiré, quando entrou o próprio
Chefe de Disciplina. Disse umas palavras ao nosso professor que logo
declarou sua aula suspensa e que, por ordem do Diretor, devíamos subir
para os dormitórios, vestir nossos uniformes de saída e irmos o mais
depressa possível para nossas casas. O Colégio fechava por tempo
indeterminado. Sobretudo que não nos demorássemos na rua.
Voltei rapidamente para Major Ávila, 16. Quando eu saíra de manhã,
tinha deixado a casa no seu aspeto habitual. Quando cheguei, tinham
caído com febre alta e calafrios a Eponina, o Ernesto, a Sinhá-Cota e o
Gabriel. Forma benigna, parecendo mais simples resfriado. (...)
Era apavorante a rapidez com que ela ia da invasão ao apogeu, em
poucas horas, levando a vítima às sufocações, às diarréias, às dores
lancinantes, ao letargo, ao coma, à uremia, à sincope e à morte em
algumas horas ou poucos dias. Aterrava a velocidade do contágio e o
número de pessoas que estavam sendo acometidas”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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