A inviabilização do sistema punitivo é a própria negação do processo
penal e da ordem pública. Artigo do juiz José Jácomo Jimenes, publicado
pela Gazeta:
O insensato desfile de condenados em segunda instância saindo das
prisões, libertados em decorrência de disputada decisão do Supremo
Tribunal Federal concluída no dia 7 de novembro passado, muitos deles
réus confessos, inclusive de gravíssimos crimes de fraudes sistêmicas e
desvios de elevadas quantias de dinheiro público, delitos que afetam
toda a sociedade, especialmente os mais pobres, dependentes do serviço
público, exige um aprofundamento sobre esse triste ponto da nossa
história.
A democracia é um caminho, um processo amplo, uma busca contínua de
liberdade, fraternidade e justiça. Acidentes acontecem nesse caminho
democrático, muitas vezes decorrentes de conjunturas inusitadas,
armadilhas propositadas, becos sem saída, cochilos e escorregões das
instituições encarregadas do processo democrático. É nesse quadro mais
amplo que deve ser analisada a recente e respeitável decisão da nossa
suprema corte.
Uma frase inocente, óbvia, retórica, tautológica, dessas de fácil
aprovação em grandes assembleias, que não determinam consequência clara e
direta, dizendo "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado da sentença condenatória", colocada na Constituição de 1988,
levou o país a uma situação inesperada e até constrangedora, gerando
perda de tempo, energia e descrença na justiça, uma das bases da
democracia.
O texto constitucional acima transcrito não fala de prisão ou mesmo
em cumprimento de pena. Fala de culpado, aquele sobre o qual foi lançado
culpa definitiva. É uma norma que nem precisaria estar escrita na
Constituição, é um truísmo. Por óbvio, se ainda não acabou o processo,
se ainda pode haver mais um recurso, o acusado não pode ser considerado
definitivamente culpado. Por que o texto constitucional não fala clara e
diretamente de trânsito em julgado para início do cumprimento da pena
de prisão, com todos os elementos para aplicação imediata? Porque não
seria aprovado pela Assembleia Constituinte, ante as danosas
consequências jurídicas e sociais imediatamente decorrentes.
A privação da liberdade de ir e vir é tratada na Constituição como
prisão, em vários incisos (LIV, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI e
LXVII) do artigo 5.º. A Constituição constrói e restringe o direito
estatal de cercear a liberdade com base no termo prisão. A Constituição
delimita completamente os requisitos da prisão e privação da liberdade
(devido processo legal e ordem escrita e fundamentada da autoridade
judiciária competente), sem qualquer menção de trânsito em julgado.
Se o consenso dominante na Constituinte fosse impedir o cumprimento
da pena antes do trânsito em julgado, a Constituição, que tanto fez uso
do termo "prisão", não seria grafada, em questão tão importante (início
do cumprimento da pena de prisão), com palavra e conceito diferente
("culpado"), fazendo uso de regra indireta e velada. O conjunto de
normas da Constituição permite concluir que não houve opção deliberada
do legislador constituinte em exigir trânsito em julgado para início do
cumprimento da pena de prisão.
Em todas as Constituições anteriores não havia essa regra, nem
semelhante, vinculando a culpa do acusado ao trânsito em julgado da
sentença. Mesmo assim, não havia qualquer dúvida de que o réu somente
seria considerado culpado quando transitado em julgado o último recurso,
tanto que sempre foi costumeiro constar das sentenças penais o secular
jargão "transitado em julgado, lance o nome do réu no livro dos
culpados". O velho bordão foi arrastado para a Constituição sem o menor
propósito de vincular cumprimento de pena de prisão ao trânsito em
julgado.
O requisito exigido pela nossa Constituição para privar a liberdade
de qualquer cidadão é o devido processo legal, como determina o artigo
5.º, inciso LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal". A Constituição, portanto, tem regra certa e
determinada quanto à condição necessária para cumprimento da pena de
prisão, qual seja, a observância do devido processo legal, dispensando
ilações, interpolações e interpretações apaixonadas.
O devido processo legal ocorre na primeira instância, onde os
acusados são ouvidos, produzidas as provas e realizada a ampla defesa.
Prolatada a sentença, concluído está o devido processo legal. Os
recursos para instâncias superiores permitem apenas revisão do devido
processo legal. Os condenados no foro privilegiado do Supremo começam a
cumprir a pena após a sentença de instância única, sem direito a
qualquer revisão, e ninguém ousa dizer que não foi cumprido o devido
processo legal.
Possibilidades de revisões de sentenças oportunizadas pelo sistema
judicial estão além do devido processo legal, não podendo impedir o
início do cumprimento da pena. Exatamente por isso a maioria esmagadora
das democracias do planeta determina o cumprimento da pena após
julgamento da primeira ou segunda instância, porque já atendido o devido
processo legal. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto
de São José da Costa Rica, documentos fundamentais sobre cidadania e
democracia, não asseguram o direito de sempre recorrer em liberdade.
Pois bem, 21 anos depois da Constituição de 1988, em 2009, o Supremo
foi convencido, por maioria, de que a proibição de culpa antes do
trânsito em julgado incluía a proibição de prisão para início de
cumprimento da pena, dando aos acusados o direito de recorrer em
liberdade por todas as quatro instâncias de julgamento do nosso sistema
judicial, contrariando sedimentada história de prisão após segunda
instância, alargando espetacularmente o espaço para interposição de
recursos, colocando o Brasil na condição de campeão mundial de recursos
protelatórios e demora processual, fortalecendo o sentimento de
ineficiência judicial, descrença e injustiça.
O parlamento também deu sua contribuição. Seduzido por fortes
interessados na demora processual, rapidinho, em 2011, aprovou uma lei
ordinária (Lei 12.403/2011), na folgada garupa da decisão do Supremo de
2009, confirmando textualmente a danosa ilação de que ninguém pode ser
preso para cumprimento de pena até o julgamento do último recurso,
adaptando, nesse sentido, a redação do agora famoso artigo 283 do Código
de Processo Penal, institucionalizando o assim chamado princípio da
inocência absoluta.
A aplicação da nova regra, propagada como princípio da inocência, a
partir de 2009, durou apenas sete anos. Um caos de injustiças e
desequilíbrios exigiu mudanças. O tresloucado sistema de quatro
instâncias de julgamento e centenas de recursos intermediários passou a
permitir que os mais ricos e poderosos ficassem impunes, salvos pelo
decorrer do tempo processual, demoras e vergonhosas prescrições. Em
2016, o Supremo, reconhecendo o disparate, voltou à antiga
jurisprudência, autorizando a prisão após segunda instância, afastando
aplicação do artigo 283 do Código de Processo Penal. Em 2017 e 2018, o
Supremo voltou ao assunto, confirmando a decisão histórica de 2016.
Agora, em 2019, em momento ainda mais explosivo, após polarizada
eleição presidencial, com o mais importante líder popular da esquerda e
ex-presidente da República preso após decisão de segundo grau, o Supremo
decide, com voto de desempate de seu presidente, voltar na
jurisprudência do princípio da inocência absoluta, que vigorou entre
2009 e 2016. A probabilidade de nova mudança no curto prazo é quase
certa, ante a possibilidade de nomeação de dois ministros favoráveis à
prisão após segunda instância.
Não consta da Constituição o alegado princípio da inocência absoluta.
Também não consta que o condenado somente pode começar a cumprir a pena
após o julgamento do último recurso possível. A Constituição autoriza
expressamente a prisão em flagrante no início do processo. A prisão
provisória, processual ou para garantir a ordem pública, é reconhecida e
aceita como constitucional, mesmo não tendo trânsito em julgado e culpa
definitiva. Todas decorrem de uma necessidade insuperável.
O mesmo ocorre com o cumprimento de pena após o julgamento da segunda
instância. É também uma necessidade insuperável. Se não for aplicada,
vai inviabilizar o funcionamento do sistema penal e da Justiça. Dezenas
de recursos levarão os processos penais até a suprema corte, gerando
inaceitável demora, prescrição e impunidade. Criminosos poderosos, que
podem contratar defesa estruturada, não serão presos em prazo razoável.
Um reduzido grupo ganha, a sociedade perde.
É insustentável querer retirar do texto constitucional um princípio
absoluto, que proíbe a prisão antes do trânsito em julgado na quarta
instância, inviabilizando o sistema punitivo, quando a própria
Constituição permite prisão processual para proteger o processo penal,
que é mero instrumento do sistema punitivo e permite prisões provisórias
para proteger a ordem pública. A inviabilização do sistema punitivo é a
própria negação do processo penal e da ordem pública.
A própria Constituição tem exemplo que permite infirmar o famigerado
princípio da inocência absoluta. É o caso do processo de julgamento do
presidente da República por crime de responsabilidade, previsto no
artigo 86 da Constituição, que determina que o presidente seja suspenso
de suas funções com o recebimento da queixa-crime pelo Supremo ou após
instauração do processo pelo Senado, muito antes do trânsito em julgado.
O parágrafo 3.º do artigo 85 determina que, “enquanto não sobrevier
sentença condenatória, nas infrações comuns, o presidente da República
não estará sujeito a prisão”, indicando claramente que a Constituição,
quando quer proibir a prisão, diz expressamente. Neste caso importante,
da prisão do presidente da República, a Constituição não fala de
trânsito em julgado, apenas em sentença condenatória.
Há ideias inadequadas aparecendo para tentar amenizar o descalabro,
como impedir prescrição após julgamento da segunda instância e autorizar
outras hipóteses de prisão provisória após segunda instância. As duas
soluções não resolvem o problema maior, a demora inaceitável (10 a 20
anos para prisão), decorrente da espera de quatro instâncias, dezenas de
recursos e habeas corpus sem limites. Essas soluções consagram a
demora, o subjetivismo e certamente elevarão insuportavelmente o número
de presos provisórios.
Pode parecer que os tribunais superiores (STF e STJ) perdem poder com
a regra de prisão automática (sem subjetivismos) após a condenação em
segunda instância, especialmente após o sucesso da Operação Lava Jato e
prisão em tempo razoável de importantes figuras da política, dirigentes
de estatais e grandes empresários. Pode parecer também que as
defensorias perdem poder e campo de trabalho com essa eficiência. Mas
não é a leitura correta. Na verdade, é um aprimoramento do sistema
penal, que deve ser saudado e protegido, porque ganha toda a sociedade
brasileira e o Judiciário como um todo.
A lambança está feita e ocorreu dentro do processo democrático. Resta
à sociedade organizar-se para levar seu descontentamento ao parlamento
e, fazendo uso do mesmo processo democrático, exigir mudança na
legislação, exigir a volta da prisão para cumprimento de pena após
condenação em segunda instância, a volta ao antigo costume e normalidade
judicial, seguindo o modelo das mais importantes democracias,
permitindo que a justiça penal seja realizada em tempo razoável, dando
cumprimento a determinação expressa da Constituição (também direito
fundamental previsto no artigo 5.º, LXXVIII), de modo a manter a crença
no Judiciário e no Estado Democrático de Direito.
José Jácomo Gimenes é juiz federal e foi professor do Departamento de Direito Privado e Processual da UEM.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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