O filósofo Karl Popper |
Três não-nativos britânicos recordaram-me enfaticamente, na década de
1990, o papel da soberania do Parlamento nacional na ausência de
revolução e contra-revolução no Reino Unido nos últimos 300 anos. Artigo
do professor João Carlos Espada, publicado pelo Observador:
É compreensível que a interminável novela do Brexit esteja a irritar
as pessoas e a contribuir para radicalizar a oposição entre Remainers e
Brexiteers (no Reino Unido e fora dele). Mas o radicalismo não é em
regra bom conselheiro. Uma certa dose de cepticismo moderado, como
diriam David Hume, Adam Smith, Edmund Burke, ou Alexis de Tocqueville,
nunca fez mal a ninguém.
Encontrei um exemplo de saudável cepticismo moderado num artigo de Vernon Bogdanor
no Telegraph de sábado, cuja leitura enfaticamente recomendo. O autor é
hoje professor no King’s College London e era Fellow do St. Antony’s
College, Oxford, nos tempos remotos em que eu por lá andei.
Bogdanor é um “Remainer”, como ele diz no último parágrafo do artigo.
Mas todo o texto antes desse parágrafo levaria a pensar, por padrões
continentais, que ele era um “Brexiteer”. O autor procura explicar os
motivos da relação peculiar do Reino Unido com a Europa continental. Não
posso resumir aqui o argumento. Mas terei de referir que ele recorda
que, no Reino Unido, não houve Revolução Francesa de 1789 (nem as suas
sequelas), nem as chamadas “revoluções liberais” de 1848, nem certamente
o bolchevismo de 1917, ou o fascismo de 1922, ou o nacional-socialismo
de 1933 — todos eles com profundo impacto no continente (cujos detalhes
caseiros me dispenso de recordar).
Não é aqui o lugar para estudar esta especificidade britânica, na
verdade uma especificidade dos povos de língua inglesa, que tenho
procurado investigar noutros lugares. Mas um ponto no argumento de
Vernon Bogdanor chamou particularmente a minha atenção:
“As profundas diferenças entre a Grã-Bretanha e o Continente,
associadas à sua história evolucionária [i.e., não revolucionária] estão
reflectidas no conceito de soberania do Parlamento, um conceito
estrangeiro na Europa continental, e que deve ser distinguido de
soberania nacional, com o qual é frequentemente confundido.”
Esta passagem atingiu a minha memória como um relâmpago. Há muitos
anos, mais do que seria conveniente enumerar, cheguei a Oxford para um
programa de doutoramento sob orientação de Ralf Dahendorf (por
recomendação de Karl Popper, de quem Dahrendorf tinha sido aluno na LSE,
antes de se tornar seu director). Dahrendorf era um alemão/britânico de
centro-esquerda [‘Esquerda Liberal’, era o termo usado entre nós, em
Lisboa], que tinha integrado na Alemanha um Governo de coligação entre
sociais-democratas e liberais, depois integrara a Comissão Europeia em
representação da Alemanha (quando negociou com empenho a adesão
britânica à CEE). Estava genericamente associado aos Liberais alemães e,
depois, aos Liberais-Democratas britânicos, além de uma distinta
carreira académica independente.
Tive seguramente muitos “choques culturais” em Oxford, alguns dos
quais é difícil definir exactamente. Mas sei seguramente qual foi o meu
primeiro “choque cultural” conscientemente registado enquanto tal. Foi
com Ralf Dahrendorf acerca da União Europeia (que, in the good old days,
se chamava ainda Comunidade Europeia).
Estávamos num debate sobre o projecto europeu, no European Studies
Centre do St. Antony’s College., no primeiro trimestre do ano académico
de 1990/1991 (Michelmas Term, é assim chamado em Oxford). Dahrendorf
presidia ao debate. Todos os oradores atacaram veemente o
euro-cepticismo de Margaret Thatcher. No final, surpreendentemente,
Dahendorf saiu em defesa enfática de Thatcher (ainda que com algumas
diferenças).
Disse ele que a soberania do Parlamento era um distintivo britânico
que tinha protegido o Reino Unido das revoluções e contra-revoluções
continentais. E que esse conceito de ‘soberania do Parlamento’ não tinha
nada a ver com ideias continentais sobre nações fundadas na raça ou na
religião [o conceito de ‘soberania nacional’ de que fala o artigo acima
referido de Bogdanor]. O Estado-nação que serve de base à soberania do
Parlamento britânico, prosseguiu Dharendorf, é um estado-nação
multi-étnico, fundado na liberdade de religião (ainda que possa
naturalmente ter uma religião dominante, até oficial, com alguma
excentricidade…). E que a Comunidade Europeia era um projecto louvável —
desde que não quisesse hostilizar a soberania dos Parlamentos
nacionais.
Lembro-me de ter ficado perplexo. Julgava ter aprendido em Lisboa, e
nos autores franceses que na altura se liam por aqui (o que não era o
caso de Raymond Aron, que tinha sido amigo de Dahrendorf), que a escolha
residia claramente entre europeísmo supranacional e nacionalismo
reaccionário. Mas Dahrendorf não era obviamente um reaccionário, era um
liberal. Mas também não era um europeísta supranacional (‘europeísta
céptico’ era a expressão que gostava de usar, para se distinguir dos
‘euro-entusiastas’ e dos ‘euro-cépticos’). E era um acérrimo defensor da
soberania dos Parlamentos nacionais.
Discuti vigorosamente este assunto com ele inúmeras vezes, nas
tutorias quinzenais que tínhamos à hora do chá, (que era
imperturbavelmente servido, o que, só por si, moderava algum excesso do
meu vigor juvenil). Intrigado, resolvi levar o tema a Karl Popper, que
eu visitava em sua casa, em Kenley, ao sul de Londres, pelo menos uma
vez por trimestre. Popper deixou-me ainda mais perplexo. ‘Sim, a
cooperação europeia é muito interessante, mas a questão fundamental é
manter a soberania dos Parlamentos nacionais, nas quais a democracia se
funda. Se os nossos parceiros europeus não quiserem manter a soberania
dos Parlamentos deles, eu faço votos de que aqui seja mantida a
soberania do Parlamento britânico’.
Lembro-me de que senti com profundo respeito — e profunda
auto-interrogação — esta espontânea sintonia entre a reverência de Karl
Popper e de Ralf Dahrendorf pela ‘soberania do Parlamento britânico’ .
Sir Karl, tal como Lord Dahrendorf, não era nativo britânico, era um
exilado austríaco que adoptara a cidadania britânica (mantendo a
austríaca, tal como Dahrendorf mantivera a alemã).
Levei este tema a uma longa entrevista que tive em 1994 com outro
antiquado liberal exilado nas Ilhas Britânicas — Sir Isaiah Berlin,
nascido em Riga, na Letónia, em 1909. Quando lhe perguntei o que pensava
da União Europeia, ele respondeu secamente: ‘se for para abrir portas
de escolha e de concorrência, tudo bem. Se for para criar uniformização
centralizada, tudo mal’.
Perguntei-lhe a seguir o que pensava do “nacionalismo britânico” que
se exprimia nas críticas de Thatcher a Bruxelas. Sir Isaiah ficou
indignado e quase saltou na cadeira: “nacionalismo britânico,
nacionalismo britânico?!!! A Grã-Bretanha nunca foi nacionalista! Foram
aqui recebidos exilados políticos de todos os países do Continente —
entre os quais me incluo.” Foi entretanto buscar inúmeros livros de
autores continentais, de esquerda e de direita, que encontraram asilo
político no Reino Unido (muitos dos quais eu nem sequer conhecia). E
depois falou de Karl Marx (sobre o qual ele escrevera uma biografia
intelectual):
“Marx escreveu O Capital na Biblioteca Britânica, sem ninguém o
incomodar. Mas queixava-se de que os ingleses não o levavam a sério.
Seguramente. Marx nunca foi levado a sério neste país. Mas, no
continente, era perseguido pela polícia. Neste país, a soberania do
Parlamento britânico garantiu-lhe a liberdade.”
Todos estes episódios, de que dei conta mais detalhada na época, nas
minhas crónicas semanais no jornal Público, ficaram para sempre na minha
memória. Muitas delas estão publicadas num livro de 2008, com muito amável Prefácio de José Manuel Durão Barroso,
que muito me honrou. São estes episódios que me aconselham a ter hoje
um olhar céptico e moderado relativamente às apaixonadas discussões
sobre o Brexit.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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