Francisco: maratona em Marrocos para agradar islâmicos. |
Tem coisa que argentino não vê, como a liberdade religiosa sem
precedentes na cidade santa que agora virou tema até de venda de carne
brasileira. Coluna de Vilma Gryzinski:
A criação de Israel
e seus desdobramentos, as camadas milenares de história no pequeno e
complicado espaço de Jerusalém, como serão acomodados os habitantes
árabes, a incômoda convivência das três religiões de raiz abraâmica, o
que vai acontecer no Oriente Médio.
Como se não fosse pouco a infinita complexidade dos temas que
envolvem a cidade triplamente santa, agora ela foi arrastada para uma
discussão sobre as exportações de carne brasileira para países árabes,
aparentemente à beira da extinção pelas iniciativas do atual presidente.
Jerusalém continuará a ser discutida até o Juízo Final, e talvez até
depois dele considerando-se o pendor deliberativo de seus habitantes.
Mas alguns pontos merecem esclarecimento, inclusive pelo teor de alta
ironia de alguns. A eles:
1. A visita de Jair Bolsonaro
a Israel tem zero importância em termos eleitorais para Benjamim
Netanyahu. No clima atual de vale-tudo, com espionagem, escutas secretas
(até que sejam divulgadas), acusações de traição à pátria e de
incitação a assassinatos políticos, uso maciço de truques digitais sujos
e outras armas de destruição eleitoral em massa, a visita de um
político desconhecido de um país de pouca projeção geopolítica fazendo
gestos de reconhecimento ao direito de Israel sobre Jerusalém, mal tem
algum registro.
2. O que contou e o que vai contar: Netanyahu ser recebido por Donald
Trump nessa época de alta volatilidade (tendo que voltar às pressas por
causa de outro início de conflagração em Gaza). E Netanyahu partir para
Moscou apenas cinco dias antes da eleição da próxima terça-feira.
Por mais que os antipatizantes de Netanyahu, o que inclui
praticamente toda a humanidade (fora os eleitores israelenses que podem
muito bem lhe dar mais uma vitória) detestem admitir, ele realmente dá
nó em pingo d’água e consegue equilibrar-se entre Trump e Vladimir
Putin.
Considere-se que Rússia e Israel fazem operações militares em campos
opostos na Síria, o que poderia degenerar rápida e catastroficamente em
um desastre bélico. Já chegou perto.
E os eleitores “russos”, reconhecidos ou não como judeus, adoram
Putin. Dos que foram votar na última eleição presidencial russa, uma
minoria, mais de 70% cravaram em Putin.
Internamente, a maioria vota no Likud, o partido de Netanyahu.
3. Transferir embaixada para Jerusalém já saiu da linha de frente
como assunto. O atrito atual é o reconhecimento das Montanhas de Golã
como território legítimo de Israel.
É claro que a iniciativa foi de Donald Trump, é claro que contraria
posições da ONU e é claro que a Liga Árabe condenou a anexação.
Como Jerusalém Oriental, a região montanhosa foi conquistada em 1967,
quando Israel chegou muito perto de ser varrido do mapa pelos exércitos
do Egito, da Jordânia e da Síria.
No contra-ataque, capturou Jerusalém e outros territórios árabes.
Vários foram devolvidos em negociações de paz ou unilateralmente, como o
Sinai, a Faixa de Gaza e, sob administração com graus variados de
autonomia, partes da Cisjordânia.
Nem um único metro quadrado de Jerusalém, com raízes levando aos
antigos reinos de Israel e de Judá, aos dois templos judaicos destruídos
e ao coração da narrativa religiosa e nacional, jamais poderia ser
devolvido sem um acordo de grandes proporções. Todas as vezes em que
isso esteve perto de acontecer, o falecido Yasser Arafat refugou.
Para o nacionalismo palestino, a cidade ganhou uma dimensão simbólica parecida com a quem tem aos olhos dos judeus.
Outra região que foi anexada é a área montanhosa de Golã que
pertencia à Síria. Pesaram aí argumentos estratégicos de natureza
existencial.
Permitir aos sírios “descer” de uma posição privilegiada no alto dos
morros ou simplesmente detonar os centros habitacionais israelenses no
pé do vale seria equivalente a entregar aos inimigos o queijo, a faca e a
tábua.
Entre a realidade estratégica e a diplomática, onde é insuportável
admitir, pelo caráter de exemplaridade, que territórios conquistados
pela força sejam anexados, mesmo quando em legítima defesa, existe uma
grande distância.
O que farão os países árabes – com a irônica exceção da Síria
de Bashar Assad, um regime isolado que vários deles tentaram derrubar
subvencionando grupos armados jihadistas – diante do reconhecimento
americano a Golã como território israelense?
Se o precedente da transferência da embaixada americana para
Jerusalém for usado, nada. Reúnem-se, protestam, esperneiam e tocam a
vida. Estão mais preocupados com a ameaça representada pela ascensão do
Irã, com Síria e Líbano no pacote. E com a própria sobrevivência, claro.
Em ambos os quesitos, dependem dos Estados Unidos.
4. Muito mais vulnerável, o Brasil pode ser alvo de retaliações pela
nova proximidade com Israel? Pode. Interessa aos países árabes,
excetuando-se obviamente os palestinos? Não. Interessa ao Brasil? Vamos
debater, e muito.
O argumento de “quebra de protocolo diplomático” vem em último lugar
na fila de arrazoados. Desde quando isso é um mal em si? Se Anuar Sadat
não tivesse “quebrado o protocolo diplomático” e aparecido de surpresa
em Israel em novembro de 1977, não teria havido o acordo de paz entre os
dois países (mostrando sua famosa capacidade de falta de visão, a Liga
Árabe suspendeu o Egito durante dez anos).
É também uma boa hora para anotar a quantidade exuberante de aliados
que a indústria pecuária brasileira subitamente encontrou entre
insuspeitos simpatizantes.
Acusados, com razão parcial, de destruírem o Cerrado, a Amazônia e o
que mais sobrar de floresta em pé, sem contar seu reacionarismo natural e
o monumental esquema de corrupção política montado pelos mais famosos
entre eles, os pecuaristas de repente viraram heróis nacionais.
Até vegetarianos estão defendendo a indústria que produz “150 mil
empregos” e abate em massa animais segundo as exigências do sistema
halal, um dos mais cruéis existentes, sem insensibilização, pior até que
o kasher.
5. Política externa soberana e independente só valia para comprar brigas infantis com os Estados Unidos?
O que dizer de uma instituição nacional que dirige ao país uma nota
nos seguintes termos: “Exigimos que o Brasil recue de imediato dessa
política”? E ainda acrescenta, ao que parece sem ironia voluntária, que a
visita ao Muro das Lamentações na companhia de Netanyahu não ajuda em
nada “a estabilidade e a segurança” da região.
Os termos partiram do Hamas, o grupo islamista que domina a Faixa de
Gaza depois de ter fuzilado, torturado ou expulsado seus bons irmãos da
Autoridade Palestina.
Anote-se que o Hamas realmente conta com apoio de uma parte
significativa dos palestinos, embora sem ter que se submeter a algo tão
vulgar quanto eleições, mesmo que fraudadas.
Ideologicamente, o Hamas tem a mesma matriz que a Irmandade
Muçulmana, de quem se afastou no papel para não entrar em choque com o
regime do Egito, do qual depende até para a movimentação.
No papel, o Hamas também deixou de pregar a destruição imediata de
Israel e aceita a criação de um Estado palestino em territórios
divididos. Pelo menos até a “libertação” final.
Os ataques com mísseis, as tentativas de infiltração para matar
judeus de qualquer maneira possível e o estado de constante beligerância
insuflado pelo Hamas são alguns dos principais motivos que levam a
maioria da população de Israel a apoiar partidos de direita inimigos de
concessões territoriais.
O pessoal mais à direita de Netanyahu, incluindo moradores de áreas
fronteiriças onde caem os foguetes inimigos, costuma criticá-lo por
contenção excessiva nas represálias e liberação de dinheiro do Catar
para pagar funcionários públicos em Gaza.
Indiretamente, Hamas negocia indiretamente com Israel, em especial
por pressão do Egito e outros países árabes, para não precipitar outro
conflito, entre outros temas.
6. Os palestinos que moram em Gaza só entram em Israel depois de
longas revistas. Uma cerca em várias etapas impede a passagem. Isso
quando o trânsito não está completamente suspenso.
Os que moram em territórios da Autoridade Palestina, isolados na
maioria pelo muro de segurança, podem ter permissão para trabalhar em
Israel. Os que têm nacionalidade israelense têm livre trânsito.
Todos podem enfrentar restrições, nos momentos de alta tensão, para
acessar a Esplanada das Mesquitas. Quando a coisa está feia, com
múltiplos ataques a facadas ou outras agressões, só mulheres, meninos e
idosos passam pelas barreiras. O mais frequente é o acesso generalizado,
sob controle estrito, claro.
A Esplanada é administrada por uma junta de autoridades religiosas
jordanianas. Devolver a Esplanada, onde outrora se ergueram os dois
templos judaicos, foi uma decisão tomada por Moshe Dayan depois da quase
miraculosa conquista de Jerusalém em 1967.
O general de tapa-olho sabia da veneração de todo o mundo muçulmano
pelo local onde ficam o maravilhoso Domo da Rocha, a construção de
cúpula dourada, e a mesquita de Al-Aqsa, onde os fieis do Islã acreditam
que Maomé, montando uma mula alada branca, veio de Meca numa viagem
mágica, ascendeu aos céus e voltou à Terra.
Judeus mais religiosos ficam revoltados com a situação na Esplanada,
onde podem circular, sob restrições, mas não fazer orações (alguns fazem
assim mesmo, fingindo falar ao celular).
O Muro das Lamentações, considerado a base dos templos, fica numa
área separada, mais baixa. Os muçulmanos não têm acesso. Embora o
reivindiquem como parte de Jerusalém Oriental e pelo valor religioso, na
época em que a Jordânia ocupava Jerusalém, cavalos e camelos da famosa
Legião Árabe eram amarrados no pé da muralha.
Nesse período, de 1948 a 1967, toda a população judaica radicada há
séculos na cidade santa foi expulsa e 58 sinagogas foram destruídas ou
profanadas.
Cidades como Jerusalém e Belém tinham , desde o início do
cristianismo, uma grande população de árabes cristãos, descendentes de
convertidos e resistentes à expansão muçulmana.
As restrições impostas durante a administração jordaniana levaram uma grande parte dessa população a emigrar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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