Fome, soldos de 60 reais, ordens para reprimir os concidadãos: as
histórias dos militares venezuelanos que desertaram e fugiram para a
Colômbia. Reportagem de meu ex-aluno Yan Boechat, dos velhos tempos (abraço tardio, véio):
O sol já estava alto na manhã de quarta-feira 27 quando o venezuelano
Andrés Rosales decidiu atravessar as águas rasas do Rio Táchira, que
separam seu país da Colômbia.
Vestindo um moletom falsificado da marca Puma, entrou em território
colombiano sozinho e quieto. Passou despercebido por dois soldados que
guardavam uma das principais “trochas”, as passagens ilegais entre os dois países, que ligam Cúcuta, na Colômbia, a San António, na Venezuela.
Caminhou por cerca de 100 metros até que encontrou um novo grupo
fardado. Tirou a carteira do bolso, sacou sua identidade militar e se
identificou. A eles, foi curto e direto: “Sou tenente das Forças Armadas
Venezuelanas e estou me entregando”. Foi escoltado até o posto da
imigração colombiana, distante 500 metros dali, na entrada da ponte
Simón Bolívar.
Cercado por compatriotas, Rosales repetia o que o levou a tomar a
decisão de abandonar a carreira de quase uma década no Exército para se
tornar um desertor. “Eu não podia mais atacar o povo. Nós vemos o que
está acontecendo, eu não podia mais fazer isso”, dizia ele, visivelmente
emocionado.
Seguiu o caminho com passos firmes, ora quieto ora repetindo que não
conseguia mais reprimir os que protestavam contra o regime de Nicolás Maduro.
Ao chegar na área administrativa da aduana, sentiu-se confortável para
tirar o moletom azul e deixar à mostra uma camiseta verde oliva que
compõe seu uniforme. Encostou a cabeça na parede e, enfim, chorou.
Rosales foi o primeiro militar a cruzar a “trocha” da ponte Simón
Bolívar naquele dia. Depois dele, mais de uma dezena de soldados repetiu
seus passos. Juntaram-se a cerca de outros 400 militares que se
entregaram aos soldados colombianos em Cúcuta desde o dia 23 de
fevereiro, quando o autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, convocou a população civil e militar a forçar a entrada no país de mais de 600 toneladas de remédios, comida e itens básicos
enviados pelos Estados Unidos. A maior parte deles, Rosales incluído,
não decidiu abandonar o regime por uma questão ideológica. Quase todos
optaram por cruzar a fronteira para fugir da miséria de proporções
inéditas na América Latina.
'Não há mais comida para as tropas'
O major Hugo Parra Martínez é o militar de mais alta patente a ter
desertado até esse momento em Cúcuta. Ele também foi o primeiro. Na
noite do dia 22 de fevereiro, menos de 12 horas antes do início da
tentativa frustrada de Guaidó de fazer entrar o comboio de ajuda
humanitária, Hugo revelou o plano a sua mãe. “Eu já pensava em desertar
há mais de um ano, quando as coisas passaram a ser absolutamente
insustentáveis”, conta ele, um piloto de helicópteros militares com
treinamento na Rússia. “Pedi permissão a ela”, relatou no fim da tarde
de terça-feira 26, em um bairro da periferia de Cúcuta, onde está
escondido com outros 45 companheiros de farda em uma pequena igreja.
Com a benção materna, Hugo preparou-se para o que chama de momento
mais importante de sua vida. Acordou cedo, antes do dia nascer, vestiu
seu uniforme e foi a uma das “trochas” — usadas até aquele momento por
contrabandistas de gasolina. “Cruzei às sete da manhã, antes de os
embates começarem entre a Guarda (Nacional Bolivariana) e os
manifestantes. Não participei da repressão.”
Hugo Parra Martinez passou 21 anos na Força Armada Nacional Bolivariana (FANB).
Entrou na academia de formação de oficiais aos 16 anos e seguiu para o
destacamento aéreo do Exército. Formou-se piloto, engenheiro aeronáutico
e participou do desenvolvimento de um novo modelo do simulador de voo
do helicóptero MI-17, uma aeronave usada tanto para transporte de tropas
como para ataque.
“Morei por dois anos em São Petersburgo. Sou fluente em russo, sou extremamente capacitado”, conta ele, sem falsa modéstia.
Foi exatamente a absoluta disparidade entre suas habilidades e seu
soldo que o fizeram cruzar o Rio Táchira naquela manhã quente do sábado
23. Seus ganhos mensais, incluídos todos os benefícios, não chegavam a
15 dólares, pouco menos de 60 reais. “Eu não conseguia nem mesmo
alimentar meus filhos, não conseguia comprar carne para a minha mãe”,
conta ele, que deixou os dois filhos na Venezuela, assim como sua
ex-mulher, a mãe, o pai e os irmãos.
“Nos últimos dois anos, a situação nos quartéis entrou em absoluto
processo de deterioração. Não há mais comida suficiente para as tropas.
Não há coisas básicas, como itens de higiene. Muitas vezes, não há nem
mesmo colchões para todos dormirem.”
Já do lado colombiano, Hugo passou a enviar mensagens a seus
comandados informando que havia desertado. Dezenas se juntaram a ele.
Estão todos amontoados em um pequeno templo da Igreja Católica
Apostólica Brasileira, uma dissidência religiosa do Vaticano criada no
Brasil na década de 1940 e que se espalhou por vários países da América
Latina.
“Hoje temos espaço para receber até treze pessoas de forma
confortável, mas hoje estamos com 45 militares”, conta o padre Sergio
Sanmiguel, responsável pela paróquia de Cúcuta dessa linha do
catolicismo, que não reconhece o Papa e não segue o celibato e a
proibição ao divórcio.
Sanmiguel se tornou um interlocutor importante entre os militares
venezuelanos decididos a abandonar a Força Armada. Nos últimos dois
anos, diz ele, dezenas de soldados e oficiais desertaram com sua ajuda.
“Mas o que temos hoje é completamente diferente. As deserções aconteciam
de forma muito mais espaçada, nada como agora”, diz ele, sentado em uma
pequena praça cercada por mais de uma dezena de soldados colombianos
que fazem a proteção da igreja.
“Precisamos deles. Já recebemos ameaças de bomba e não sabemos o que
podem tentar fazer com os militares que abandonaram Maduro”, conta.
O padre Sanmiguel relata não ter recebido ajuda nem do governo
colombiano nem da oposição venezuelana, que tanto incentivou a deserção
de militares nas últimas semanas. Os 45 que vivem em sua igreja são
alimentados por doações feitas pela comunidade do bairro ou por fiéis
que apoiam sua disposição em ajudar.
“Não é uma situação fácil para nenhum deles. Abandonaram tudo e estão
aqui sem nada, apenas com a esperança de que a coisa melhore. Muitos
deixaram não só a carreira, mas também suas famílias inteiras”, diz. Ao
ser interrompido por uma de suas fiéis sobre o que fazer com os dois
pares de sapatos 43, o sacerdote prontamente recomendou: “Aqui estão
todos calçados, leve para o hotel, lá há muitos que estão descalços.”
Júlio*, sargento da Guarda Nacional Bolivariana (GNB), desertou no
domingo 24 ainda de madrugada. Passou o dia anterior a comandar seus
soldados nos enfrentamentos contra os manifestantes venezuelanos, que
tentavam abrir a passagem para a entrada dos caminhões de ajuda
humanitária. Quando terminou seu turno, às quatro da manhã, decidiu que
havia tocado o seu limite.
“Cheguei ao quartel e decidi vir. Disse que ia fumar um cigarro e vim
para a ‘trocha’. Estava tudo escuro, mas deu tudo certo”. Desde então,
Júlio vive em um hotel no centro de Cúcuta junto com outros militares.
Sem calçados que não sejam as botas militares que trazia ao entrar na
Colômbia, passa os dias com um par de meias e chinelos que lhes foram
doados.
Ele, como o major Hugo, decidiu abandonar o Exército porque não tinha
dinheiro para nada. Seu último salário foi de apenas 6 dólares, pouco
mais do que 20 reais. Ao longo do último ano, conta ele, usava o tempo
livre para fazer qualquer tipo de bico que pudesse aumentar um pouco sua
renda.
“Eu pedi baixa três vezes, mas eles não nos dão, não nos deixam sair.
A maior parte dos meus colegas pediu baixa, mas ninguém consegue,
estamos todos presos na Guarda, não podemos sair”, conta ele, lembrando
que seu salário é incapaz de comprar um quilo de queijo na Venezuela.
Júlio chegou em Cúcuta acreditando que seria tratado como um herói.
Imaginou que encontraria Juan Guaidó ou alguns dos deputados da
Assembleia Nacional que prometiam serem estes os últimos dias de Maduro.
Não viu nenhum deles e nem ouviu qualquer coisa de nenhum de seus
representantes.
“Achei que me tornaria um herói, mas virei um refugiado. Não tenho
dinheiro nenhum e não nos informam o que acontecerá conosco. Eu sustento
minha mulher e meu filho de dois anos e ainda não sei se poderei
trazê-los para cá e como vou conseguir lhes enviar dinheiro”, diz ele na
esquina do hotel fortemente guardado por soldados colombianos.
“Passamos o dia aqui, caminhando de um lado para o outro ou tentando
falar com nossas famílias pelo celular.”
As primeira informações que recebeu de casa não foram boas. Nos dias
seguintes de sua deserção, agentes do serviço de inteligência do governo
venezuelano, Sebin, foram até sua casa. Revistaram tudo o que tinha e
levaram todas as condecorações militares que recebeu na curta carreia de
cinco anos na GNB. “Ao menos foram respeitosos com minha mulher e meu
filho. Ela me disse que os trataram bem”.
Julio ainda não sabe exatamente o que acontecerá daqui para a frente.
Conforme relatou, a Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur)
está tratando dos trâmites burocráticos para que ele receba o status de
refugiado na Colômbia. A Acnur, por sua vez, afirma que apenas presta
consultoria ao Ministério das Relações Exteriores da Colômbia para
tratar da questão.
*Nome fictício criado a pedido do entrevistado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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