BLOG ORLANDO TAMBOSI
A ideologia enviesada e os vínculos pessoais mostram quem é o ministro Silvio Almeida. Duda Teixeira para a revista Crusoé:
Ao
criar o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, o presidente Lula
buscou resgatar um tema nobre, que tinha sido sequestrado pelas
clivagens políticas. Após quatro anos de um Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos sob o comando da pastora Damares Alves, o
presidente nomeou o advogado Silvio Almeida para a pasta. Mas a escolha
não resolveu os problemas antigos e criou novos, com a pasta sendo
usada para acobertar violações de direitos humanos por ditaduras e para
atacar rivais políticos do governo petista. Em nove meses de governo,
Almeida, um advogado que tem como padrinhos o lobista Walfrido Warde e o
influencer Felipe Neto, tem sido exímio em instrumentalizar os direitos
humanos para suas próprias causas.
Foi
graças aos bons contatos que Almeida conseguiu uma ascensão meteórica
na vida pública, apesar de já ostentar uma longa trajetória acadêmica.
Em 2019, ele apareceu na lista dos livros mais vendidos com a obra
Racismo Estrutural. No início do ano seguinte, as oportunidades se
multiplicaram. Ele iniciou uma coluna no jornal Folha de São Paulo,
inaugurou um canal no Youtube sob o comando de Felipe Neto e começou a
dar aulas e palestras em eventos do Instituto para Reforma das Relações
entre Estado e Empresa, o Iree, criado por Walfrido Warde. Em agosto de
2021, Almeida já aparecia como presidente do Centro de Estudos
Brasileiros do instituto. Nesse ano, ele estreou como sócio do
escritório Warde Advogados.
Warde
é um personagem central no currículo de Almeida. Uma de suas principais
causas é a legalização do lobby no Brasil. Trata-se de um mestre no
assunto. Warde também é um grande apoiador do PT e crítico histórico da
Lava Jato. No ano passado, ele doou 400 mil reais ao partido na campanha eleitoral de Lula.
Foi a segunda maior doação de pessoa física ao partido. Warde também
atuou em diversas causas para membros do partido e para empresários
camaradas próximos à sigla. Em 2018, ele representou a ex-presidente
Dilma Rousseff na ação que apurou possíveis irregularidades na compra da
refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos. Em 2020, trabalhou para os
irmãos Joesley e Wesley Batista, da JBS, em um processo contra o
procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Este ano, pediu a
suspensão dos acordos de leniência da Odebrecht na Lava Jato,
representando Psol, Solidariedade e PCdoB. Esses três partidos satélites
do PT se dizem preocupados com a saúde financeira das empresas que
praticavam o capitalismo de compadres no Brasil. Atualmente, Warde
comanda a defesa do juiz Eduardo Appio, que foi afastado do comando da
Lava Jato após meses tentando enterrar a maior operação contra a
corrupção da história do Brasil.
Warde
é hábil em costurar relacionamentos. Além de amealhar bons clientes,
ele criou um prêmio para cooptar jornalistas. Muitos dos seus aliados
são convidados a participar de eventos no Iree e a dar cursos em uma
escola que ele fundou, o Kope. Silvio Almeida era um deles, além de
Márcio Pochmann (atual presidente do IBGE), Guilherme Boulos
(pré-candidato à prefeitura de São Paulo) e o jornalista Reinaldo
Azevedo. Esse último tem um podcast, chamado Reconversa, feito em
parceria Warde, em que eles entrevistam vários figurões do governo, como
Silvio Almeida. É uma rede de contatos que atravessa fronteiras. Em
maio de 2019, Warde promoveu um jantar para homenagear o então
embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, que depois andou às turras
com Bolsonaro. Um dos presentes à festa era Guilherme Boulos. Ao
encontro, seguiram-se participações de Wanming e de membros do Partido
Comunista da China em eventos do Iree. Em uma palestra sobre partidos
políticos, Wanming afirmou que o Partido Comunista vinha elevando o nível da administração pública “no parâmetro” da democracia.
Warde, Silvio e Reinaldo, em gravação do Reconversa
Em
2022, antes de assumir o Ministério, Almeida cortou seus vínculos
empregatícios com o Iree e com a Warde Advogados. Mas continuou leal ao
antigo chefe e a suas ideias. Não se ouve de sua parte qualquer crítica à
China. Em uma entrevista dada no início de setembro ao jornalista Jamil Chade
(colunista do Uol e “destaque internacional” do prêmio Iree de
jornalismo), Almeida foi questionado sobre os abusos de direitos humanos
na China. O ministro respondeu mudando de assunto: “Como ministro de
Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, me preocupo mais com o
destino das centenas de relatórios que falam sobre desafios enfrentados
globalmente e, particularmente, pelos brasileiros, como o racismo, a
falta de acesso a medicamentos e vacinas, o crescimento da pobreza e da
fome, os abismos enfrentados pelas mulheres na busca por igualdade, a
exploração sexual de crianças, as condições precárias dos
trabalhadores”. Os temas da China e do Brasil, contudo, não são
excludentes.
De
Almeida também não se escuta qualquer reparo ao russo Vladimir Putin,
que ordenou a invasão à Ucrânia e tem contado com a cumplicidade dos
chineses. Na mesma conversa com Jamil Chade, o ministro foi questionado
sobre a falta de uma agenda de direitos humanos no Brics, grupo de
países que inclui China, Brasil, Rússia, Índia e África do Sul. “Como
você sabe, a temática dos direitos humanos não consta da agenda do
Brics. O Brasil sempre foi um país com uma diplomacia muito pragmática.
Não precisamos concordar com tudo para mantermos relações proveitosas ao
país com x, y ou z”, disse Almeida. “Temos de ter cuidado para que o
discurso de direitos humanos, por mais válido que seja, transforme-se em
uma arma política para aqueles que se incomodam com o fortalecimento e o
crescimento econômico do mundo em desenvolvimento”. Faz lembrar o
discurso econômico da ditadura militar, que afirmava que primeiro era
preciso “crescer o bolo”, para depois reparti-lo. Neste caso, negócios
primeiro, direitos humanos depois.
Seguindo
a mesma lógica, Almeida esquivou-se de fazer um comentário sensato às
críticas do presidente Lula ao Tribunal Penal Internacional, o TPI, que
emitiu um mandado de prisão contra o presidente Vladimir Putin por
sequestro de crianças ucranianas. Mas ele se sentiu plenamente à vontade
para assinar um documento “em defesa do povo cubano”, pedindo a
“retirada de Cuba da lista dos Estados que patrocinam o terrorismo”. O
gesto ocorreu em uma sede do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
Terra, o MST. Almeida abraçou a bandeira da ilha comunista e posou para
três fotos. Pedir respeito aos direitos humanos em Cuba, onde qualquer
pessoa pode ser imediatamente presa por se manifestar contra a ditadura,
nem sequer foi cogitado.
Almeida assina manifesto “em defesa do povo cubano” no MST
O
que Almeida faz, em essência, é criticar nos outros os pecados que traz
consigo. Um dos seus principais motes é de que os países ricos
“instrumentalizam” o tema dos direitos humanos. Ao criticar violações em
Cuba, China ou outras ditaduras, as nações ricas estariam buscando
interferir nesses países. Os direitos humanos não seriam, assim, um tema
universal, mas algo que se pode usar de um jeito ou de outro, como uma
“arma política” para atingir benefícios ocultos. Mas Almeida faz
exatamente isso. Ele instrumentaliza os direitos humanos. A diferença é
que, em vez de usar isso para atacar as ditaduras, ele as defende.
E
Almeida também usa os direitos humanos como arma política para atacar
os seus desafetos nacionais, incluindo aqueles que são execrados pelo
ecossistema criado por Walfrido Warde. No sábado, 23, o ministro acionou
a Advocacia-Geral da União, a AGU, para tomar providências contra os
deputados Nikolas Ferreira e Felipe Barros. Os dois teriam publicado
vídeos dizendo que Lula teria permitido o banheiro unissex no Brasil. É
um tema de direitos humanos? Seria, se pessoas da comunidade LGBTQIA+
estivessem sendo tolhidas em seus direitos de alguma forma. Nas palavras
de Almeida, o crime dos dois deputados teria sido o de “provocar o
pânico moral e expor ainda mais as pessoas LGBTQIA+ ao ódio e à repulsa
social”. Nas redes sociais, o ministro deu lição de comportamento: “Quem
usa a mentira como meio de fazer política, incentiva o ódio contra
minorias e não se comporta de modo republicano tem que ser tratado com
os rigores da lei. É assim que vai ser”.
Na
mensagem seguinte, sem explicar o raciocínio, Almeida foi para cima do
senador Sergio Moro, que comandou a Lava Jato de Curitiba, e do deputado
cassado Arthur do Val. “Serão também tomadas providências contra outros
propagadores de fake news, dentre os quais um sujeito que já teve seu
mandato cassado por desrespeitar mulheres de um país em guerra e outro,
um senador da República que quando juiz de direito envergonhou o Poder
Judiciário”. Moro respondeu, colocando na conta do ministro o fato de
não ter se pronunciado após Lula afirmar que não vai levar em conta
gênero e cor nas escolhas para a Procuradoria-Geral da República e para o
Supremo Tribunal Federal: “Temos um ministro dos Direitos Humanos que
se cala quando seu chefe Lula adula Putin e Maduro, ataca o TPI e ignora
a importância das mulheres no STF. Mas está com tempo para ameaçar
parlamentares por criticarem o governo”.
Além
de instrumentalizar os direitos humanos, Almeida faz um uso heterodoxo
de seu cargo. Em abril, o ministro trabalhou para uma mudança de nome da Ordem do Mérito Princesa Isabel,
que passou a se chamar Prêmio Luiz Gama. A condecoração tinha sido
criada no governo de Jair Bolsonaro em homenagem à monarca que assinou a
lei áurea. Depois de feita a alteração, Almeida foi à Comissão de
Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados
para explicar a decisão. “Nós colocamos um outro prêmio. Um prêmio que
vai atender critérios racionais, de acordo com a lei, sem desvios de
finalidade. E que leva o nome de um grande campeão, e ninguém há de
negar isso, um campeão do Brasil que está inscrito, inclusive, no
panteão dos heróis da pátria, que é o Luiz Gama”, disse.
A contribuição que o advogado Luiz Gama prestou à luta contra a escravidão é inegável. Gama foi um precursor na campanha pela abolição,
ao trabalhar como advogado para libertar escravos. Almeida, contudo,
pode ter resgatado o personagem histórico por outros motivos. Ele é o
dono do Instituto Luiz Gama, criado em 2010. O “grande campeão” dos
direitos humanos está, portanto, no nome da sua empresa. Ao ser
questionado por Crusoé, Almeida respondeu que está licenciado do
Instituto Luiz Gama. “Quem exerce a presidência é o advogado Renato
Gomes“, afirmou por email.
Da
página da empresa no Instagram, o visitante é redirecionado ao canal do
Youtube de Silvio Almeida, que conta com 267 mil inscritos. Em um vídeo
publicado há dois meses (abaixo), Almeida anunciou o primeiro episódio
de um videocast sobre direitos humanos. “Neste momento, eu ‘estou’
ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil”, afirmou. O
vídeo foi uma iniciativa do Ministério, e todos os links que aparecem na
descrição do vídeo são da pasta, embora a conta do Youtube em que ele
aparece tenha sido criada por Almeida em 2010, quando ele ainda não era
ministro. O vídeo é interrompido por anúncios publicitários, o que
indica que é monetizado.
Causa,
no mínimo, alguma confusão que o ministro tenha publicado um vídeo
institucional em sua conta privada. Segundo o advogado Antonio Carlos de
Freitas Jr, especialista em direito constitucional, a situação pode
também dar margem a questionamentos legais. “Ao divulgar em sua página
pessoal um programa em vídeo produzido com recursos do Ministério que
comanda, Silvio Almeida pode incorrer em improbidade administrativa,
caracterizada pelo enaltecimento da pessoa do agente público, como se
ele próprio fosse a personalização de políticas e programas da pasta que
ocupa“, diz Freitas Jr.. “Ao proceder dessa forma, o ministro obtém uma
promoção pessoal às custas do erário público, agindo, então, de modo
ímprobo e ferindo o princípio da impessoalidade imposto a todos os
ocupantes de cargos públicos no país“.
Na
aba que explica o que é o canal, aparece a empresa de mídia do
influenciador digital Felipe Neto, a Play9. Almeida não figura na lista
dos “criadores” de conteúdo que foram abraçados pela companhia, uma das
mais bem-sucedidas no mundo digital. Mas um contato “para consultas
empresariais” mostra um email da Play9 em nome do ministro. Em resposta
enviada por escrito a Crusoé, Almeida afirmou: “O canal já foi
produzido pela Play9, mas não é mais. Ressalta-se que não tem qualquer
vínculo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Inclusive
não há mais produção de conteúdo para o canal“. Até a noite da
quinta-feira, quando esta revista foi concluída, o primeiro episódio do
videocast continuava na conta privada do ministro. A amizade entre
Almeida e Felipe Neto também persiste. Em fevereiro, o ministro criou um
grupo de trabalho para combater o discurso de ódio e o extremismo.
Entre os 29 integrantes, claro, estava Felipe Neto.
Ao
atacar a Lava Jato e rivais políticos, ou afagar ditaduras como China e
Cuba, Silvio Almeida demonstra que, no Brasil, o Ministério dos
Direitos Humanos continua sendo usado como arma política pelo governo de
turno e pelos lobbies com acesso aos gabinetes de Brasília.
Postado há 5 weeks ago por Orlando Tambosi
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