MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 28 de maio de 2022

O Haka de Carosella

 



Paola Carosella ainda tem que aprender que o prazer de um xingamento é muito maior quando o xingamento é completamente universal. O xingador deveria sempre se incluir no próprio xingamento, como um homem-bomba. Via Crusoé, a crônica de Alexandre Soares Silva (o nosso @LordAss no Twitter):


Alguém discorda de você. O que é mais gostoso: persuadir essa pessoa, ou xingar essa pessoa?

Não sei dizer, já que nunca persuadi ninguém de nada, mas vendo pelo comportamento das pessoas às vésperas de uma eleição parece óbvio que o segundo é bem mais gostoso do que o primeiro.

O primeiro é um desejo vago, um ideal, algo que todos concordam que seria bom e bastante útil se acontecesse. Mas o segundo é uma tentação tão irresistível quanto dormir vinte minutos a mais no dia da sua prova do Enem.

Paola Carosella, a chef argentina, youtuber, ex-apresentadora de TV, mulher entojadamente politizada e sósia mais bem-apessoada do falecido governador paulista Orestes Quércia, causou uma certa celeuma este mês por ter dito em um podcast que quem vota em Bolsonaro é “escroto ou burro”.

Gente como Carosella têm todo o interesse em chamar mais pessoas para o seu lado, mas quando chega o momento não se aguentam, não se seguram — o eleitor ex-bolsonarista estava até pensando em se filiar ao seu partido, perguntando como fazer e tal, mas assim que estava tirando a caneta do bolso para preencher o formulário é xingado pela mesma pessoa que estava dois minutos antes tentando recrutá-la. Apenas porque sim. Leva cuspida na cara, mostram-lhe o dedo do meio, é mandado de volta pra casa.

O que acontece? Que fenômeno é esse? Possessão demoníaca? Sabotagem inconsciente? Tourette?

O que Paola Carosella conseguiu com isso? O prazer do insulto, que é um prazer que eu entendo muito bem. Mas entenderia muito mais se ela também estendesse o insulto a si mesma e aos eleitores do seu próprio candidato favorito.

Paola Carosella ainda tem que aprender que o prazer de um xingamento é muito maior quando o xingamento é completamente universal. O xingador deveria sempre se incluir no próprio xingamento, como um homem-bomba. Quando você não se inclui num xingamento se torna vulnerável a que respondam com a simples verdade: “É, sou sim. Mas não somos todos?”

Mas além da compulsão de xingar existe outra motivação: não queremos ganhar ou perder, queremos pertencer a tribos. Queremos fazer uma dança tribal, pular pra cima e pra baixo com os nossos amigos enquanto cantamos uma canção gutural e sincopada sobre cortar a garganta dos inimigos. Toda discussão partidária equivale ao Haka dos jogadores de rugby da Nova Zelândia.

O naturalista, botânico e explorador inglês Sir Joseph Banks descreveu assim o Haka, que testemunhou na sua primeira viagem à Nova Zelândia em 1769:
“…uma dança guerreira que consiste de várias contorções dos membros, durante as quais a língua é com frequência expelida até ficar com um comprimento incrível e as órbitas dos olhos crescem tanto que é possível ver um círculo de brancura em volta da íris…”

Nos próximos meses vamos ver muitas danças de contorções dos membros e olhos arregalados, feitas com o propósito duplo de intimidar os inimigos e de fortalecer o laço com os amigos. Praticamente é só o que vamos ver: dois grupos dançando um na frente do outro com toda a capacidade de intimidação das gangues dançarinas e piruetantes do musical West Side Story (o de 1961).

Mas eu não reclamo, eu não reclamo nunca. Vai ser divertido. Eu gosto de musicais.

***

Para quem acorda todos os dias com a esperança de finalmente ver o primeiro sinal da derrocada do movimento woke — será hoje? Ou em oitenta anos? — o novo especial de stand-up de Ricky Gervais, “SuperNature”, tem causado alguma alegria. “Ricky Gervais acaba com o feitiço dos woke”, exagera um pouco a revista Spiked. Ou, na verdade, exagera muito. Mas 1) o especial de Gervais, mais 2) o de Dave Chappelle, mais 3) Bill Maher dizendo algumas coisas levemente anti-woke (nos alegramos com tão pouco), mais 4) o recente memorando interno da Netflix dizendo, aos próprios funcionários woke, que se eles se sentem incomodados com algum produto da empresa podem muito bem ir embora; tudo isso seguido da 5) notícia do cancelamento de vários shows woke (sugestão de jogo: tome um shot de tequila cada vez que eu usar a palavra “woke” neste texto), além é claro do 6) affaire Musk-Twitter, tem dado alguma esperança aos meus amigos reacionários e a mim também.

Mas da minha parte só queria ver um show, um show só, de stand-up politicamente incorreto em que o comediante não se visse obrigado a falar várias vezes que “é só uma piada”, “é só uma ironia”, “sabe o que é ironia?”, “pessoal não sabe mais o que é ironia” etc; um show em que o comediante não se sentisse obrigado a colocar uns avisos de que, na verdade, é uma boa pessoa, como Dave Chappelle faz no final do seu especial “The Closer”, contando uma história longuíssima do seu amigo trans.

“São só piadas”, diz Gervais, no seu especial. “Eu vou falar umas coisas em que eu não acredito de verdade…“

O fato de nenhum comediante conseguir falar piadas politicamente incorretas sem meia-hora de preâmbulos e rapapés prova que, infelizmente, ainda não assistimos ao começo da derrocada do movimento woke (último shot de tequila).

Não ainda. Não exatamente. Mas amanhã, quem sabe.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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