Retrato da política real em miniatura
Os princípios elevados, de que os jovens se orgulham quando entram no
jogo, desaparecem por força das conveniências. João Pereira Coutinho,
via FSP:
É um velho ditado: se você gosta de salsichas, não queira saber como
elas se fazem. O que vale para salsichas vale para a política.
Maquiavel, esse gênio florentino, teve a temeridade de escrever um livro
a respeito. Ainda hoje não lhe perdoam o crime de ter mostrado como as
salsichas são feitas.
Mas existem sempre os masoquistas, que não resistem a uma boa
espreitada. Para eles, há um documentário na Apple TV que, salvo melhor
opinião, é a melhor colheita deste 2020: Boys State, de Amanda McBaine e
Jesse Moss.
Apresentações: a Legião Americana organiza no estado do Texas, desde
1935, um encontro anual para adolescentes interessados em política. O
objetivo da organização de veteranos é que eles aprendam algo sobre
democracia e discurso cívico. Os adolescentes se candidatam. Muitos são
os chamados, poucos os escolhidos. Sobram 1,2 mil.
Divididos em dois “partidos” – o Nacionalista e o Federalista –, os
rapazes (existe uma escola só para moças) têm de se candidatar aos
cargos mais importantes: chefe de partido, procurador-geral, magistrado
da Suprema Corte, vice-governador e, claro, governador, o prêmio
principal. Para isso, têm de fazer campanha, convencer quem não está
convencido, vencer as primárias. Depois, pela lógica da coisa, não podem
apenas contar com os votos do próprio partido para se elegerem; é
preciso convencer alguns militantes do partido contrário (os 1,2 mil
participantes foram divididos em 600 mais 600, lembra?). E, no fim, ao
vencedor, as batatas. Corrijo. Ao vencedor, as baratas: é óbvio que
nenhum cargo político está em disputa. Só os egos.
Existem duas formas de olhar para o documentário. A primeira é
lembrar a frase que escrevi mais acima – “adolescentes interessados em
política” – e repetir o que Anthony Lane escreveu ironicamente na New
Yorker a respeito do filme: um adolescente obcecado por política deveria
ser impedido de participar nela quando atingisse a maioridade. Uma
parte de mim concorda. Os rapazes têm 16 ou 17 anos. Que fazem eles ali,
quando estão nos píncaros do seu potencial lascivo?
Eu respondo: imitam o que veem nos adultos. Nesse sentido, Boys State
é uma espécie de retrato da “política real” em miniatura. Os discursos
são de uma pobreza que arrepia. Confirma-se: a emoção tem sempre mais
sucesso que a razão, em qualquer idade. As campanhas eleitorais
rapidamente degeneram para os ataques ad hominem. O tribalismo impera,
prova provada de que é possível regredir mentalmente quando nos dizem
que a nossa cor é o vermelho (e o inimigo é o azul, ou vice-versa).
E os princípios elevados, de que eles se orgulham quando entram no
jogo, desaparecem por força das conveniências. Um deles, de seu nome
Robert, tem uma posição pró-escolha em matéria de aborto. Perante um
auditório mais conservador, passa a defender uma posição pró-vida com o
mesmo fervor. “Agora entendo melhor por que os políticos mentem para
serem eleitos”, diz ele em entrevista posterior, como se tivesse tido a
iluminação de uma vida.
Acontece que o documentário não pode ser reduzido a uma escola de
cínicos ou mentecaptos. E quem esperava O Senhor das Moscas errou. Ali,
no contato com centenas de outros jovens, o fanatismo desce um degrau e
eles também estão dispostos ao diálogo e ao consenso. Exatamente como os
“Pais Fundadores” desejavam: a única forma de moderar o poder das
facções é pelo governo representativo, dizia James Madison. O
representante, acrescentava Madison, só pode ser eleito se ele for capaz
de se moderar para servir às várias sensibilidades políticas.
Além disso, a democracia pode ser imperfeita e a visão que temos do
seu funcionamento remete-nos para a famosa fábrica de salsichas. Mas
qual é a alternativa? Cidadãos apáticos que desertam da democracia? Pior
ainda: regimes autoritários em que a política é reservada a uma
oligarquia corrupta? Prefiro a fábrica de salsichas. E prefiro o final
tragicômico de Boys State, quando os perdedores choram amargamente.
Enoch Powell, um importante político inglês (que caiu em desgraça por
causa de um único discurso contra a imigração), costumava dizer que
todas as carreiras políticas terminam em fracasso. Essa verdade, que
tende a escapar a políticos profissionais, é talvez a grande lição que
todos levam para casa.
Num ponto, porém, concordo sem reservas com Anthony Lane: seria bom
revisitar os rapazes daqui a algumas décadas, só para ver aonde eles
chegaram. Quem sabe? No passado, um dos mais famosos participantes desta
experiência foi o jovem Bill Clinton. Que, pensando bem, talvez se
tivesse saído melhor como presidente se, aos 17 anos, tivesse usado a
energia da idade em outros carnavais.
BLOG VAL CABRAL
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