É impossível viver sem corrupção se os partidos políticos mandam no TCU,
que vai fiscalizar as despesas feitas por eles mesmos. J. R. Guzzo, via
Oeste:
O caso do ministro Vital do Rêgo Filho, do Tribunal de Contas da
União, vale por um curso completo sobre a destruição do Estado
brasileiro, por obra do roubo ao Erário, que o sistema político e as
leis em vigor nos últimos trinta anos tornaram inevitável, permanente e
insolúvel. É o que se poderia chamar de “corrupção contratada”. Os
magnatas que vivem nos galhos mais altos da árvore onde se abriga a
máquina pública nacional vão roubar, quaisquer que sejam as condições de
temperatura e pressão — é assim que está estabelecido no tipo de
contrato vigente entre os homens públicos e o Brasil, e suas cláusulas
têm de ser cumpridas à risca, o tempo todo. A população, naturalmente,
não assinou nada: recebeu o pacote pronto e acabado da Constituição
Cidadã de 1988, teve de aceitar o que está escrito ali “por adesão”,
como se diz, e cumpre o seu dever contratual metendo a mão no próprio
bolso para pagar a festa sem interrupção dos que se tornaram
proprietários do Estado por força de lei.
Esse Vital é um espécime clássico dessa gente — e a sua história,
como mencionado no início, é uma demonstração de manual a respeito de
como a administração pública está condenada a funcionar neste país.
Vital, ou “Vitalzinho”, ex-senador da Paraíba, acaba de ser acusado, em
inquérito do Ministério Público, de ter recebido R$ 3 milhões da
empreiteira de obras OAS, em 2016, para trabalhar em seu favor numa CPI
que então investigava a roubalheira desesperada na Petrobras — que
depois se transformaria no “Petrolão”. Mais: segundo a denúncia, pediu
que a OAS o apresentasse às empreiteiras Camargo Corrêa, Andrade
Gutierrez, Queiroz Galvão, Engevix, UTC, Toyo Setal — e, é claro, à
incomparável Odebrecht — porque queria receber mais R$ 5 milhões de cada
uma, em pagamento pelos mesmos serviços que prestou na CPI. Até uma
criança de 10 anos sabe como funciona: você monta uma investigação no
Congresso para apurar corrupção num órgão público qualquer, e aí
extorque os ladrões para fazer com que a CPI não dê em nada. Elas nunca
dão.
“Vitalzinho” é acusado pelo MP de ter feito o seu trabalho a partir
de abril de 2016; em dezembro desse mesmo ano, foi nomeado — que
surpresa — pela presidente Dilma Rousseff para o TCU. Não porque
entendesse alguma coisa de contas públicas; foi nomeado unicamente por
ser do MDB da Paraíba. Pelas leis, regimentos, usos e costumes da vida
pública brasileira, os partidos políticos têm o direito de nomear a
maior “cota” de ministros do TCU. É isso mesmo: os políticos são os que
fiscalizam as contas dos governos, e os governos são formados exatamente
pelos próprios políticos. É uma das mais espetaculares hipocrisias da
democracia brasileira pós-88, essa mesma cuja “defesa” provoca chiliques
diários em ministros do STF, na mídia liberal e nas classes
civilizadas. No papel, o que pode haver de mais lindo do que entregar
aos representantes do povo a fiscalização das despesas do Estado? Na
prática, o que se tem é o “Vitalzinho”.
É impossível viver sem corrupção na máquina estatal se os partidos,
entre tantos outros delírios, mandam no organismo que vai fiscalizar as
despesas feitas por eles mesmos; é como chamar traficantes de drogas
para julgar casos de tráfico. É óbvio que esse trabalho deveria ser
feito por profissionais de contabilidade independentes, tecnicamente
capazes e politicamente neutros. (Imaginem, só para imaginar, como
seriam as coisas se o trabalho do TCU fosse feito por uma grande empresa
internacional de auditoria, contratada em concorrência pública: você
acha que o controle das contas do governo seria mais honesto, ou menos?
Seria mais bem-feito, ou ficaria pior do que é? Pano extremamente
rápido, como no “Teatro Corisco” de Millôr Fernandes.) Mas afastar os
políticos desse pernil que há décadas garante a ladroagem maciça contra a
população brasileira, e organizar um sistema racional de fiscalização
das contas públicas, é atentar “contra a democracia”, a “ordem
constitucional” e o “Estado de Direito”. É fascismo. Tudo bem: para
combater a extrema direita, então, deixe-se tudo como está — e fica
garantido, oficialmente, que o Brasil continuará a ser roubado pelos que
mandam no aparelho estatal.
“Vitalzinho”, como está escrito no inquérito, foi acusado de receber
os seus milhões enquanto era senador, e não como ministro do TCU. E que
raio de diferença faz isso? Os políticos chegam ao tribunal carregando
cada um o próprio passado, intacto; não é que ao ser nomeados façam um
mergulho no Rio Jordão para receber o batismo e que as suas vidas
anteriores sejam anuladas. O TCU é conjunto dos seus ministros,
exatamente como eles são. No Brasil das “instituições democráticas”
atualmente em vigor, o que temos no Tribunal de Contas é o padrão
“Vitalzinho” de qualidade. Da mesma forma, seria uma ilusão jogar na
presidente Dilma a culpa por essa história miserável; ela é responsável
por ter assinado o decreto que nomeou o homem, claro, mas possivelmente
nem sabia o que estava fazendo. Quem tem de responder por isso é o
Senado da República. De um total de 65 votos (os demais senadores
estavam ausentes da sessão), “Vitalzinho” foi aprovado por 63, contra
uma abstenção e um único voto contrário — só um, não mais que um. Com um
pouquinho mais de esforço, seria unanimidade. Não há nenhuma
justificativa para esse ato de demência; é assim mesmo que as coisas
funcionam no Brasil. O Senado brasileiro é puro “Vitalzinho”, e os dois
juntos são o Tribunal de Contas da União.
As investigações que levaram à denúncia do Ministério Público, no
âmbito da Operação Lava Jato, têm uma riqueza chocante de detalhes. Que
cérebro conseguiria inventar os episódios narrados no inquérito? O autor
das denúncias é o célebre Leo Pinheiro, grão-senhor da OAS no tempo da
ladroagem maciça — aquele mesmo Leo Pinheiro cujo depoimento, validado
por todos os juízes que apreciaram o caso, levou o ex-presidente Lula à
cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no processo do
“Tríplex do Guarujá”. As propinas eram pagas pela “Controladoria” da
OAS, nome que a empresa dava à sua área de corrupção, como o
“Departamento de Operações Estruturadas” que imortalizou a Odebrecht. A
denúncia relaciona um funcionário do TCU, empregado no próprio gabinete
de “Vitalzinho”, entre as pessoas que receberam as propinas da OAS, em
dinheiro vivo. Foram usados contratos fictícios com a “Construtora
Planície”, transações com a “Casa Lotérica Tambaú” e outros truques
básicos do Guia Brasileiro da Corrupção para fazer os pagamentos. Houve,
segundo a acusação, entrega de dinheiro num shopping center do Recife,
no aeroclube de João Pessoa e num restaurante de beira de estrada entre
as cidades de Goiana e Bezerros, em Pernambuco.
A tudo isso o ministro responde como dez entre dez acusados que se
veem no mesmo tipo de rolo: manifestou a sua “estranheza”. Não
precisará, provavelmente, fazer muito mais do que isso para se defender.
Além de achar estranho, diz que as denúncias são “velhas”; no entender
clássico dos advogados em processos de corrupção, fatos devem ser
anulados por decurso de prazo, como um pacote de sabão em pó cuja
validade venceu. A Justiça está demorando a decidir, por que os réus,
justamente, se valem da lei para impedir que ela decida? Então zera
tudo. Ninguém tem culpa de nada e todos podem ir celebrar o precioso
espetáculo das “instituições em funcionamento”. Em último caso, para
“Vitalzinho”, sempre há o infalível Supremo Tribunal Federal. Para
garantir a coisa toda pelos sete lados, os ministros Gilmar Mendes e
Ricardo Lewandovski estão desenvolvendo com sucesso uma vacina chamada
“parcialidade do juiz”. Caso alguém seja condenado, basta ir ao STF e
dizer que o juiz foi parcial — o sujeito sai livre no ato, mesmo que a
condenação tenha sido assinada por nove magistrados, o da primeira
instância e os outros oito, dos tribunais superiores a ele, que
confirmaram a correção da sentença inicial. Em suma: a possibilidade de
alguém ser punido por ladroagem é praticamente nula no Brasil de 2020.
O sistema foi legalmente montado com o objetivo de promover a prática
da corrupção e de garantir a sua impunidade. Não pode funcionar de
outro jeito.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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