Westminster Hall, no Palácio de Westminster, em Londres. |
Prédios e monumentos são uma lembrança perpétua das coisas boas que
devem ser preservadas, das coisas ruins que devem ser reformadas ou
descartadas. Coluna de Bruno Garschagen, via Oeste:
Numa das cenas da ótima série Vitória: a Vida de uma Rainha, o
ex-primeiro-ministro inglês Lorde Melbourne diz ao príncipe Alberto que
seu maior legado não tinha sido seu governo. Seu grande orgulho era ter
ordenado que fosse salvo o Westminster Hall durante o incêndio em 16 de
outubro de 1834 que destruiu quase todo o Palácio de Westminster, onde
funcionava o Parlamento.
“Às vezes acho que é minha realização mais duradoura. Gostaria de ter
construído algo que deixasse uma marca neste país”, afirmou Melbourne,
para quem “qualquer tolo pode ser primeiro-ministro, mas deixar algo
belo como isso [Westminster Hall], algo que vai deixar as pessoas
maravilhadas daqui a séculos, é isso que vale a pena”. Autor de livro e
apresentador de documentário sobre a beleza, o também inglês Roger
Scruton não discordaria.
O Palácio de Westminster foi reconstruído com um novo projeto que
aproveitou as partes do antigo prédio, que incluía o Hall. Preservar
aquilo que foi salvo do incêndio e erguer uma nova edificação no mesmo
lugar é simbólico da maneira como determinadas sociedades entendem sua
história, a tradição, o significado das construções e monumentos, e o
próprio exercício da política.
Construído em 1097, o Westminster Hall era (e continua sendo) a
estrutura mais antiga do palácio, uma maravilha arquitetônica que tinha
sediado muitos eventos históricos, cerimoniais, judiciais, políticos.
Foi lá que, em janeiro de 1649, o rei Carlos I foi julgado e condenado à
morte por traição após a Guerra Civil Inglesa, que abriu espaço para o
louco do Oliver Cromwell experimentar sua república autoritária.
Descartar o Hall e construir a casa do Parlamento em outro local
seria dar as costas para a história que fora desenvolvida a partir do
trabalho árduo, do esforço, do sangue dos britânicos famosos e anônimos.
Prédios e monumentos são uma lembrança perpétua das coisas boas que
devem ser preservadas, das coisas ruins que devem ser reformadas ou
descartadas. É o passado vivo que atua como sábio conselheiro —
sapiência que os atuais vândalos de monumentos ignoram completamente.
No Brasil, o passado é um esquecimento, um incômodo, algo a ser
ridicularizado, apagado, destruído. Esse tem sido o padrão desde o golpe
militar, em 15 de novembro de 1889, que instituiu o presidencialismo
republicano. Primeiro foram os positivistas e republicanos radicais que
tentaram apagar todos os vestígios da herança Monárquica e da
experiência política do Império Brasileiro. Depois foram os marxistas,
que, valendo-se do trabalho iniciado pelos inimigos da Monarquia,
tentaram criar uma nova história (Nelson Wernek Sodré), social
(Florestan Fernandes), política (Carlos Nelson Coutinho), econômica
(Caio Prado Júnior).
Nem as testemunhas materiais de nossa história política foram
preservadas a contento, que dirá seus personagens de carne e osso. Não
há nenhuma memória viva do Parlamento no Brasil assim como Westminster o
é para o Reino Unido. Desgraçadamente, para muitos a história política
começa com a construção de Brasília, cuja arquitetura é representação
dessa tentativa de apagar a história e substituí-la por outra que não
tem absolutamente nada a ver com nosso passado, inclusive arquitetônico.
Eis o teste: quantas pessoas hoje no Brasil sabem quem foram e o que
fizeram os grandes nomes da política no século 19? E o local onde
funcionou o Parlamento durante o Império Brasileiro? A Câmara dos
Deputados, por exemplo, estava sediada de 1822 a 1914 na Casa de Câmara e
Cadeia (entre 1914 e 1923, a sede da Câmara foi o Palácio Monroe).
Construção da metade do século 17 reformada no século 19, ficava
localizada na atual Praça XV, antigo Largo do Carmo, no centro do Rio de
Janeiro.
Conhecida como edifício da Cadeia Velha, nome muito mais apropriado
para os dias de hoje, a construção foi demolida em 1923. Em seu lugar
foi erguido o Palácio Tiradentes, que abrigou a Câmara dos Deputados
entre 1926 e 1960, ano da transferência da capital para Brasília. Desde
então é a casa da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro,
cujos integrantes não merecem a construção que os abriga.
A partir de 1826, o Senado do Império teve como sede o Palácio do
Conde dos Arcos, que fica no Campo de Santana, no Rio de Janeiro. O
local foi construído em 1819 para ser a residência do português dom
Marcos de Noronha e Brito, o oitavo Conde dos Arcos de Valdevez. Em
1824, o imperador dom Pedro I comprou o imóvel e mandou reformá-lo para
ser a sede do Senado, que funcionou ali até 1925 e foi transferido para o
Palácio Monroe (criminosamente demolido em 1976). A partir daquele ano,
o prédio abrigou repartições públicas e, na década de 1940, passou a
sediar a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A sede da chefia de Estado e de parte da chefia de governo com o
Poder Moderador era o Palácio de São Cristóvão, residência oficial do
imperador. De antiga residência do comerciante Elias Antonio Lopes, que
doou a propriedade ao rei dom João VI em 1809, o imóvel foi reformado
várias vezes até 1831.
O palácio foi palco de um período histórico fundamental para a
construção do país e sede de eventos históricos importantíssimos, como a
Declaração de Independência de Portugal, assinada pela princesa
Leopoldina em 1822, e a realização da Assembleia Constituinte que criou a
Constituição de 1824. Até o golpe de 1889, continuava a ser a
residência oficial do imperador.
Mas, em 2 de setembro de 2018, um incêndio ainda por ser explicado
destruiu toda a parte interna e a cobertura da edificação, restando
apenas parte da estrutura bastante danificada e correndo o risco de
desabar. O palácio abrigava desde 1892 o Museu Nacional, cujo acervo
também foi quase todo incinerado. Nem os golpistas de 1889 tiveram
coragem de fazer aquilo que a negligência da gestão estatal acabou
conseguindo.
Essa é a malfadada realidade, nossa sina: não há hoje nenhum prédio
que guarde a memória da política brasileira do século 19, da fundação de
nosso país. A maioria nem sequer sabe quem são os fundadores do
Império. E os poucos personagens que sobreviveram ao assassinato
histórico são deturpados e ridicularizados.
Não nos faltam vultos históricos, pelo contrário. São tantos os nomes
relevantes que integravam os partidos Conservador e Liberal, e que
tiveram atuação marcante no Gabinete de Ministros, na Câmara e no Senado
do Império, que a escolha de alguns pode soar injusta. Não há como,
porém, não citar Marquês de Caravelas, Visconde de Itaboraí, Barão de
Cotegipe, Marquês de Paraná, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Zacarias
de Góes e Vasconcelos, José Thomaz Nabuco de Araújo, Duque de Caxias,
Marquês de São Vicente, Braz Florentino Henriques de Souza dentre
outros tão importantes quanto, como o próprio dom Pedro II. Esses homens
deixaram um legado político e cultural, e colaboraram para que a beleza
fosse parte da política por meio da arquitetura.
Se ignorarmos quem foram os grandes estadistas, o que fizeram e as
belas edificações onde o Brasil foi politicamente construído, não
teremos um parâmetro mais elevado para julgar os políticos que hoje
estão no poder, do presidente da república aos deputados federais e
senadores; dos deputados estaduais aos governadores; dos prefeitos aos
vereadores.
Se nosso padrão de julgamento é o mais baixo possível, a tendência é
aceitarmos o exemplo ruim do presente como a representação de algo que
“sempre foi assim”; que “não tem jeito”; que “todo político é bandido e
incompetente”; que “a política não presta”; que “é preciso alguém para
pôr ordem nessa bagunça”; que “só uma intervenção militar resolve”. Por
outro lado, quanto mais alto for o nosso parâmetro, melhor a cultura
política do presente, maior a exigência sobre a forma de governo, sobre
os candidatos e sobre os políticos eleitos.
Não deixa de ser representativo o fato de que a feiura arquitetônica
da era presidencialista, especialmente a dos prédios estatais (não só em
Brasília e à exceção dos antigos ainda em uso), esteja em sintonia com a
mediocridade dos políticos e com a degradação da política. Uma árvore
má não pode dar bons frutos, já alertava Mateus (7:18).
Em seu livro Civilização, que nasceu do excelente documentário de
mesmo nome exibido pela BBC de Londres em 1969, o classicista inglês
Kenneth Clark listou três elementos que foram fundamentais para a
construção e a preservação da civilização ocidental: arquitetura,
leitura e escrita. Clark confessou que, se “tivesse de escolher o que
expressa melhor a verdade da sociedade, se o discurso de um ministro da
Habitação ou as construções reais da época, diria que são as
construções”. A esse respeito, temos muito por que nos envergonhar.
Um político hoje em Brasília, se sensato e conhecedor de nossa
história, jamais poderia olhar para o teto da Câmara ou do Senado e ser
tomado de encantamento, como Lorde Melbourne no Westminster Hall. Também
não poderia considerá-lo (e todo o prédio do Congresso) como algo belo e
capaz de deslumbrar as pessoas daqui a séculos. Nem muito menos achar
que, dado o modelo político atual, seria possível fazer aquilo que um
conservador muito preza: construir em vez de destruir.
Bruno Garschagen é cientista
político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de
Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor
dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos,
Deveres Mínimos (Editora Record).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário