Nos debates sobre o futuro, ganham espaço o discurso anticapitalista e
as antigas utopias para reinventar o mundo, escreve Selma Santa Cruz na Oeste. Péssima perspectiva, portanto:
Ninguém poderia imaginar que duraria tanto. Que, quatro meses após a
imposição do confinamento, ainda continuaríamos isolados e com quase
tudo paralisado ao redor. Estima-se que entre um terço e metade dos 7,8
bilhões de habitantes do planeta tenham ficado recolhidos em casa,
simultaneamente, no final de abril. Mas não adiantou. Não só não se
vislumbra o fim do pesadelo, como temos sido sobressaltados por alertas
cada vez mais assombrosos: há o risco de novas ondas; talvez as vacinas
não se mostrem totalmente eficazes; e as sequelas da covid-19 podem ser
mais graves do que se supunha.
Enquanto isso, o mundo como o conhecemos entra na lista de vítimas.
Vai desmoronando em câmera lenta, com o desaparecimento de milhões de
empregos e empresas por toda parte, a multiplicação de famílias sem
renda e moradia, uma geração inteira fora da escola, a miséria se
disseminando como peste. O que esperar depois de uma ruína dessa
magnitude? A discussão sobre como sair do inferno provocado pelo vírus, o
lockdown e a gestão irracional da crise vêm acirrando a já intensa
polarização ideológica, ao pôr em confronto visões radicalmente
antagônicas.
Enquanto pragmáticos focam programas imediatos para reativar a
economia, e pensadores da inovação propõem reformas estruturantes para
tirar partido da transformação digital, o autodenominado “campo
progressista” quer aproveitar para virar a mesa. Tenta resgatar surradas
utopias para solapar o modelo do capitalismo liberal consagrado no
Ocidente desde o pós-guerra — e que parecia ter se provado de vez, após o
colapso dos regimes comunistas, na década de 1990.
Grandes crises, lembram os historiadores, costumam trazer grandes
consequências. Como a Grande Depressão da década de 1930, um período de
convulsão social e política que desembocou na ascensão do nazismo e na
2ª Guerra Mundial. Por enquanto, grande parte dos países tem conseguido
conter a falência do sistema despejando dinheiro em suas economias e
tentando garantir a sobrevivência dos desempregados por meio de auxílios
emergenciais. Só no Brasil, foram até agora R$ 200 bilhões. Nos Estados
Unidos, os pacotes somam mais de US$ 3 trilhões e há outros a caminho.
Já a União Europeia aprovou, na semana passada, um fundo comum de € 1,8
trilhão, equivalente a R$ 11,5 trilhões.
Mas sabe-se que esse tipo de estímulo fiscal e transferência de renda
não poderá perdurar indefinidamente. Nos Estados Unidos, por exemplo, a
maior parte do auxílio deve expirar nos próximos dias e especula-se
como reagirão as pessoas destituídas de quaisquer meios de
sobrevivência. A preocupação parece pertinente também no Brasil, onde
mais de um terço da população passou a depender dos repasses do auxílio
emergencial.
Também não há certezas sobre quais serão os resultados práticos desse
volume sem precedentes de estímulos para a recuperação da economia
global. O otimismo inicial em relação à chamada “retomada em V” durou
pouco. As analogias agora são com um U, para os prognósticos de que ela
levaria meses ou alguns anos; um W, levando-se em conta o risco de novos
surtos da pandemia e uma crise financeira; ou até mesmo um L,
sinalizando um longo período de contração. “No momento, há muito mais
coisas que não sabemos do que coisas que sabemos”, alertou dias atrás o
fundador da Bridgewater Associates, o maior hedge fund do mundo, Ray
Dalio, durante evento promovido pela XP.
O desafio será reativar as economias de forma sustentada, com
estratégias voltadas à recuperação dos investimentos do setor privado.
Pois, embora a maioria dos economistas venha apoiando essa maciça
intervenção estatal diante da excepcionalidade da crise, grande parte
dos países já enfrenta taxas de endividamento próximas ou superiores ao
PIB — caso do Brasil, dos Estados Unidos, da França e do Reino Unido,
entre outros. Terão, portanto, capacidade limitada de sustentar essas
despesas, caso a pandemia se prolongue, aprofundando a depressão e
minguando a receita dos impostos. Afinal, como gostava de lembrar a
ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher, não existe “dinheiro
público” — ele é sempre subtraído do trabalho ou do investimento de
alguém.
A questão, portanto, é quem acabará pagando a conta. E quais setores
serão beneficiados com tamanho manancial de recursos públicos. Um ponto
especialmente crítico no Brasil, dado nosso histórico de corrupção, o
sistema político disfuncional e o passivo acumulado de problemas básicos
nunca resolvidos, como as carências em educação, saúde e
infraestrutura. Com a economia encolhendo pelo menos 4,5% neste ano,
depois de uma década de estagnação, ficará ainda mais desafiante fechar
as contas e administrar os interesses em conflito sem provocar
turbulências sociais e políticas.
A tendência à radicalização, aliás, já é evidente na Europa e nos
Estados Unidos, e vem sendo comparada à da década de 1930, provocada
pela depressão global que sucedeu ao crash da Bolsa de Valores de Nova
York. Na arena política e das ideias, ganha força o discurso
revolucionário dos meios acadêmicos e ativistas, ecoado pela grande
mídia. “A esquerda está redesenhando o mundo”, opinou recentemente uma
articulista do The New York Times, citando os movimentos a favor do fim
da polícia, do fechamento das prisões e do cancelamento do pagamento de
aluguéis, que se disseminaram nos últimos meses pelo país. “Não queremos
reformas, queremos uma nova sociedade.”
A ofensiva da esquerda norte-americana ganhou tração também com a
recente onda de ocupação de espaços públicos por grupos de extremistas, à
moda da antiga Occupy Wall Street, que fez escola pelo mundo após a
recessão de 2008. Desde os protestos antirracistas de março,
multiplicaram-se zonas que se proclamam “livres” e “independentes” dos
governos locais, como a do bairro do Capitólio, em Seattle, capital do
Estado de Washington, que se manteve durante um mês, antes que as
autoridades resolvessem recuperar o espaço público após a ocorrência de
assassinatos. Nesta semana, a polícia de Nova York também teve de
desocupar a área em frente ao City Hall, prédio da prefeitura,
transformada em acampamento de ativistas e sem-teto. E agentes federais
foram enviados a cidades como Portland e Chicago para conter
manifestações violentas.
Por trás desta onda contestatória, segundo diversos institutos de
pesquisa respeitados, estaria a crescente adesão da juventude
norte-americana ao socialismo — uma dessas pesquisas, a da Harris Poll,
indica que praticamente um em cada dois norte-americanos nascidos depois
de 1981, mais exatamente 49,6% deles, preferiria viver em um país
socialista. Por mais surpreendente que pareça, considerando-se o
confortável padrão de qualidade de vida da imensa maioria da população
local, conquistado justamente graças ao sistema capitalista, o dado
explica a popularidade de políticos socialistas como o senador e
ex-pré-candidato à Presidência Bernie Sanders e o status de celebridade
conquistado pela musa da esquerda local, a deputada federal Alexandria
Ocasio-Cortez.
Mas o fenômeno não se restringe à América do Norte. Segundo a revista
Forbes, a radicalização da esquerda será uma das tendências globais
para 2021. O que fica evidente para quem acompanha a mídia internacional
e a safra recente de livros de não ficção dos dois lados do Atlântico,
onde predominam obituários das economias de mercado. Na abastada Europa,
chega-se a defender uma “economia do decrescimento” e a redução do
consumo — sem levar em conta os milhões que ainda não tiveram acesso aos
benefícios da economia de mercado que se pretende abolir. Já no Brasil,
fala por si só o destaque dado pela grande mídia às propostas radicais
do candidato à prefeitura de São Paulo Guilherme Boulos, líder do
Movimento dos Trabalhadores sem Teto e da frente de esquerda Povo Sem
Medo — aquele que nunca foi eleito para nenhum cargo público e ficou em
décimo lugar na eleição presidencial de 2018.
Parece consenso que, embora o mundo não vá mudar radicalmente após a
covid-19, muitas transformações aceleradas pela pandemia podem ter vindo
para ficar. Como o aumento do comércio on-line e do trabalho remoto,
que acarretaria mudanças em cadeia nos fluxos de mobilidade e na
reorganização do espaço urbano nas grandes cidades dos países
desenvolvidos, devido à desocupação de prédios comerciais,
estacionamentos e shopping centers. Estudos indicam que nos Estados
Unidos, por exemplo, cerca de 37% dos empregos poderiam ser
definitivamente transferidos para home office. Nesse contexto, surgem
propostas para redirecionar parte dos investimentos destinados à
retomada a empreendimentos da chamada “nova economia”. No caso do
Brasil, por exemplo, com o objetivo de promover desenvolvimento
tecnológico e segmentos de maior valor agregado, com vistas à superação
da dependência da exportação de commodities.
Como diz o adágio que já se tornou chavão, crises trazem, de fato,
oportunidades. Nenhum democrata bem informado pode se fechar à análise
de novas ideias. Nem desconsiderar a necessidade de aperfeiçoamentos ou
reformas no modelo do capitalismo liberal, cuja força tem sido,
justamente, sua capacidade de evoluir com o tempo, sem rupturas
destrutivas, adaptando-se às novas potencialidades da economia e
demandas sociais de cada época. O que surpreende é o empenho, justamente
por parte das elites intelectuais, em destruir um sistema que conseguiu
alavancar todos os indicadores de desenvolvimento econômico, social e
humano nas últimas décadas, com a redução da miséria, do analfabetismo,
da mortalidade infantil e das desigualdades, além do aumento da
longevidade.
Em seu último livro, O Novo Iluminismo — Em Defesa da Razão, da
Ciência e do Humanismo, o neurocientista e professor da Universidade
Harvard Steven Pinker, autor de mais de uma dezena de obras aclamadas
internacionalmente, investiga esse paradoxo. Depois de elencar uma longa
lista de dados que atestam a incontestável prosperidade do mundo na
virada do século 20 para o 21, ele especula que a tendência do cérebro a
memorizar fatos negativos pode explicar a ênfase obsessiva da mídia e
da intelectualidade nos problemas, ignorando aspectos positivos, numa
espécie de pessimismo atávico e negação do progresso. Isso acabaria,
contraditoriamente, por desvalorizar a razão, a ciência e o humanismo,
justamente os valores que possibilitaram essas conquistas civilizatórias
e constituem a base para novos avanços.
O capitalismo com certeza não é um sistema perfeito. Porém, numa
analogia com a célebre frase de Winston Churchill sobre a democracia,
ainda não se conseguiu inventar alternativa melhor. Além do fato de que
todos os experimentos de engenharia social e política já tentados para
substituí-lo acabaram fracassando redondamente, a um custo imensurável
em vidas, sofrimento e opressão totalitária. Portanto, entre a evolução e
a revolução, melhor ficar com a primeira opção.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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