O retrospecto dos primeiros 19 meses de Bolsonaro é deveras lamentável. Artigo do professor Bolívar Lamounier para o Estadão:
“Não se pode julgar um homem, decidir de sua alma e do que sente, enquanto ele não mostrar quem é, ditando leis”.
Sófocles, pela boca de Creonte, rei de Tebas
Decorrido um ano e meio de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro
já “ditou” muitas leis, mas não deu mostras de haver compreendido os
enormes desafios que o Brasil enfrentará no curto e no médio prazos.
A pandemia que nos atingiu em cheio explica somente uma parte dos
desacertos a que temos assistido. O retrospecto dos primeiros 19 meses
de Bolsonaro é deveras lamentável. Ele começou mal, abraçando uma agenda
megalomaníaca - acabar com a “velha política”, mudar profundamente os
valores e comportamentos da sociedade, e por aí afora. E não parece ter
consciência dos graves problemas que teremos de enfrentar na
pós-pandemia; a julgar pelo cenário de hoje, chegaremos ao fim desta
crise estrategicamente enfraquecidos e despreparados para o que virá
depois.
Mesmo no que concerne à pandemia, o fato é que Jair Bolsonaro mais
atrapalha do que ajuda o esforço dos Estados e municípios no combate à
doença. O artigo 30, inciso VII, da Constituição de 1988 determina,
cristalinamente, que compete aos municípios “prestar, com a cooperação
técnica e financeira da União e dos Estados, serviços de atendimento à
saúde da população”. Será que, para o presidente, “cooperação técnica”
significa tentar induzir os agentes de saúde e uma parcela importante da
sociedade a se defender da covid-19 com remédios comprovadamente
ineficazes? Ou debochar do uso da máscara, não observar o distanciamento
social, abraçar correligionários (e até bebês) e fomentar aglomerações?
Qualquer pessoa capaz de interpretar o citado inciso VII concluirá que
tais condutas são formas de sabotar, não de prestar assistência técnica.
Por sorte, a missão dos agentes de saúde convocados a enfrentar a
doença vem sendo cumprida a contento.
O preenchimento de altos postos da administração pública também
evidencia - com as exceções de praxe - o despreparo de Jair Bolsonaro
para o cargo que ocupa e, pior que isso, sua tendência a se deixar
pautar por orientações ideológicas, no mínimo, patéticas. Os estragos já
feitos pelos ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores tão
cedo não serão sanados. Somados às idiossincrasias do próprio
presidente, Ricardo Salles e Ernesto Araújo são diretamente responsáveis
pelo isolamento do Brasil e pela vertiginosa queda de nosso país no
exterior. O elevado número de militares no governo também preocupa, não
tanto como uma premonição autoritária, mas pelo risco de debilitação das
Forças Armadas como organização nacional.
Descabe completamente, e ainda mais nos limites de um artigo, tentar
prever o que vai acontecer com a economia mundial e, dentro dela, nossas
chances de recuperação. Há quem acredite numa recuperação rápida e
quem, com fundamentos igualmente sólidos, descarte inteiramente tal
hipótese. Num ponto, porém, não podemos escorregar. Instigados pelo
tombo que a economia vai levar, os nacional-estatistas já começam a se
manifestar de forma audível. A inutilidade da discussão liberalismo
versus antiliberalismo em abstrato já deveria estar mais que clara, mas
já há quem apregoe as vantagens e até mesmo nosso “inexorável retorno”
ao modelo estatizante que praticamos durante a maior parte do século 20.
Isso como se em algum momento tivéssemos de fato implementado uma
reforma liberal!
Salta aos olhos que, ainda se fosse desejável, ressuscitar a esta
altura um modelo de forte predomínio do setor público na economia
equivale a ignorar a realidade imediata com que nos deparamos. Antes da
pandemia, fechar o Orçamento federal já exigia do governo um
contorcionismo patético. Sabíamos - e sabemos - todos que um ajuste
rigoroso das contas públicas e uma expressiva atração de investimentos
estrangeiros eram - e são - condições essenciais para uma retomada
saudável do crescimento. E sabemos, agora, que a pandemia destruiu um
montante colossal de riqueza. Centenas e centenas de empresas faliram,
muitas delas sem chance de recuperação. O impacto de tudo isso na
arrecadação será medonho. Como, então, ressuscitar nosso antigo modelo
de crescimento, torcendo mais uma vez o nariz para o capital privado?
Sobre a educação, não há muito a acrescentar. Nosso sistema de
ensino, como ninguém ignora, é pior que ruim: é péssimo, calamitoso.
Algo em torno de 70% dos indivíduos com idade igual ou superior a 15
anos não atingem o nível internacionalmente tido como aceitável em
Matemática, 60% não atingem tal nível em Ciências e 50% ficam aquém dele
em Português. Nessa área, o atual governo já está no terceiro ministro,
tendo os dois primeiros - como diria um crítico de ópera - “passado
pela cena sem dizer palavra”. Importante, direi mesmo histórica, foi a
aprovação do Fundeb, emenda constitucional que destina mais recursos
para a educação básica, obra muito mais do Congresso que do Executivo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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