Depois desta crise, eu também sou partidário de mandar os governantes
pastar, porque sei que eles vão aproveitar a ocasião. Mas que o consigam
só se deve à ignorância ou falta de memória dos cidadãos, não à atuação
do Estado para conter a epidemia. Artigo de Ricardo Dias de Sousa para o Observador:
Sobre a pandemia actual evitei pronunciar-me nas redes sociais por um
simples motivo: não sou médico, e muito menos epidemiologista. E, no
entanto, há cerca de um mês, quando reportaram as primeiras duas mortes
em Itália fui ao supermercado comprar víveres para a eventualidade de
ter de ficar fechado em casa. Não houve neste acto nenhum pânico apenas a
interpretação dos factos. Esse dia, a essa hora, as prateleiras
transbordavam de alimentos e a loja estava praticamente vazia. O mesmo
não sucede actualmente. Os alimentos não faltam, mas outros bens já
começam a escassear, para não dizer que, com uma alta percentagem da
população infectada, ir ao supermercado seria inevitavelmente uma
actividade de risco.
Também não sou um visionário. Confesso que para mim a China também
estava longe, as epidemias no Sudeste Asiático são, ou parecem ser,
frequentes e não existe memória viva de nenhuma ter chegado aqui. Mas a
Itália está aqui ao lado (eu vivo em Madrid) e se havia dois mortos ali,
de uma doença altamente transmissível e que é relativamente lenta a
matar, então o vírus já estava aqui e a solução era isolar-se, como os
seres humanos fizeram desde tempos imemoráveis. Curiosamente a grande
maioria das pessoas não pensa assim, e eu estou cada vez mais convencido
que a nossa sociedade, do alto da sua excepcional capacidade
tecnológica e prosperidade material, deixou de ter memória, como se o
que aconteceu no passado já não nos pudesse afectar.
Além da memória, parece que ao deixar as funções de cálculo às
entranhas dos computadores no seu dia a dia os indivíduos perderam a
capacidade de perceber as características de uma função exponencial. É
que se um dia há 2 mortos e 50 casos diagnosticados, isso significa não
só que existirão 1000 casos não diagnosticados, como que a cada 3-4 dias
esse número duplica e num mês, mês e meio, vão existir dois mil mortos,
cinquenta mil casos diagnosticados e um milhão de infectados. E a
contagem não para: 3 ou 4 dias depois serão o dobro. E foi aqui que a
estupidez dos políticos se revelou fatal. Acharam que para conter a
doença bastava impedir o contacto com as regiões de onde o surto vinha,
sem se aperceber ou importar com o facto de que no seu proceder não
impediam a sua propagação e exportação a regiões e pessoas por infectar.
Quem diz dos políticos, diz de muitos dos nossos concidadãos que
encheram praias e esplanadas num total desrespeito, não pelas suas
próprias vidas (que estão nesse direito e muitos eram população de muito
baixo risco), mas pela vida dos demais, em particular dos mais débeis
da nossa sociedade: os idosos e os enfermos. Não quero pensar como teria
sido se o outro grande grupo de dependentes – as crianças – tivessem
estado entre as principais vítimas. Acredito que os governos tivessem
actuado contundentemente antes, mas duvido que os jovens – grande parte
deles não são pais nem tencionam sê-lo – se tivessem comportado de outra
maneira.
A resposta governamental na generalidade dos países ocidentais foi
tíbia e totalmente desadequada porque o COVID-19 não encaixa na
realidade em que eles próprios acreditam e a generalidade da população
comparte. Só assim se explica que tenham permitido realizar eventos
multitudinários, como jogos de futebol ou manifestações do Dia da
Mulher, que fazem as delícias de qualquer coronavírus que se preze. Além
disso, onde é que se viu parar practicamente toda a actividade
económica, da qual depende essencialmente o seu poder, por causa de uma
gripe, ou uma espécie de gripe? Foi só quando perceberam que a
possibilidade de essa espécie de gripe, que afinal é uma espécie de
pneumonia, poder colapsar totalmente o sistema de saúde é que eles
começaram a actuar, ainda assim de forma insuficiente na minha modesta
opinião. Para colocar a questão em números porque de doenças percebo
pouco: existem em Portugal aproximadamente 10 milhões de pessoas. Se 70%
da população for infectada, estamos a falar de 7 milhões de pessoas, a
maior parte das quais assintomáticas, o que explica a praia. Mas 20%
destas, ou seja, um milhão e quatrocentas mil pessoas vão ter um quadro
mais severo, a necessitar quarentena, e 15% das mesmas, ou seja,
duzentas e dez mil pessoas terão complicações a necessitar internamento
num hospital. E é aqui que a coisa se complica porque não só não existe
capacidade para internar 210 mil pessoas como os recursos humanos,
médicos, enfermeiras, etc., teriam que ser desviados de outras pessoas
com outras doenças para ser dedicados ao combate a esta doença. Deixei
para o fim o número de mortes porque nesta fase e com todas estas
complicações adicionais que surgiriam no sistema de saúde é
indeterminável, mas se for 1% das pessoas que apresentaram um quadro
severo (uma estimativa optimista baseada nos números da China que
aplicou medidas muito mais extremas) estaríamos a falar de 14.000
pessoas e tudo isto em 3 ou 4 meses por causa do tal crescimento
exponencial. A gripe comum mata (e demasiado) em Portugal, com cerca de
3.000 casos por ano, pelo que a inépcia dos governantes é geralmente bem
tolerada. O caso de Pedrogão onde esta inépcia foi de bradar aos céus
não provocou nenhum desgaste eleitoral, pelo que a questão que deveria
preocupar os portugueses é se o governo que pode suportar 14.000 mortos
no espaço de 3 meses. Felizmente o próprio acha que não porque já
começou a tomar medidas, além de que não se deve deixar de aproveitar
uma crise para aumentar o poder, mas sobre isso falaremos mais adiante.
Desde que o homem observa a Natureza que se apercebeu que nesta
sobrevivem os mais fortes e esse parece ter sido o critério de acção não
confessado de muitos dos que ocuparam as praias nos últimos dias. No
entanto, a ideia de justiça que o Ocidente exportou para o resto do
globo com maior ou menor sucesso assenta numa ideia radicalmente oposta.
A Natureza não é justa, só as sociedades humanas almejam sê-lo ao
estender o acesso à justiça a todos, independentemente das suas
capacidades físicas ou intelectuais, do número dos seus bens ou da sua
influência política. E o motivo por que conseguir isto é impossível na
sua totalidade é exactamente porque é anti-natural. Afinal de contas o
mais forte tem mais energia para fazer valer os seus direitos, o mais
inteligente para se aperceber de quais estes podem ser, o mais rico para
contratar os melhores advogados e o mais influente para chegar ao juiz.
O único antídoto contra esta eventualidade são os valores partilhados
pelos indivíduos que constituem uma sociedade. Só esses, devidamente
interiorizados, podem alterar a balança de forças da justiça. E são de
tal maneira eficazes que, se os valores da sociedade forem injustos,
então é o indivíduo quem, independentemente da sua força, intelecto,
fazenda ou poder, vai sucumbir às mãos da turba.
Na génese do mundo Ocidental, há coisa de mil anos, emergiu uma
realidade política em que a justiça e a violência eram normalmente
exercidas por duas instituições distintas: a Igreja e o Estado. Houve
tentativas de ambas partes para concentrar este poder, mas fruto do
acaso ou da Divina Providência, nenhuma se conseguiu impor.
Coincidentemente (ou não) este equilíbrio manteve-se até que chegou uma
pandemia – a Peste Negra – a partir da qual, paulatinamente, o Estado
foi centralizando o poder. No entanto, a ideia de que era importante
separar os poderes já estava consolidada e é disso reflexo a tentativa –
muito mais imperfeita – nas revoluções liberais, de impor e manter essa
separação, só que sob a égide de uma mesma instituição: o Estado.
A esta explicação mais ou menos mecânica da separação dos poderes
falta acrescentar a particular definição de justiça da Igreja que era,
filosoficamente, a do Cristianismo. É do Cristianismo que resulta essa
ideia anti-natural de que os débeis têm direito à justiça em igualdade
de situação que os fortes. Não tivesse existido essa preocupação e a
separação de poderes teria sido um exercício fútil porque, no fundo, não
teria existido diferença nenhuma entre o Estado e a Igreja, como não
existiu em nenhum outro lugar ou época. O Estado sempre foi, é e será o
responsável pelo Maat, pela manutenção da ordem cósmica de onde emanam a
Verdade e a Justiça. Apenas no mundo cristão e pós-cristão assim não
sucede. Só que o Cristianismo praticamente desapareceu destas paragens,
pelo que a manutenção deste equilíbrio depende essencialmente da memória
do Cristianismo algo que, numa sociedade que parece destituída da
mesma, corre o risco de extinção, como determinam as leis de Darwin para
qualquer animal inadaptado.
E é esta perda de memória o que mais nos deve preocupar. Depois da
pandemia o modo de vida da população em geral vai-se alterar, como se
alterou com o SIDA ainda que o tempo se encarregue de nos fazer pensar
que não, que sempre foi assim. Por exemplo, antes do SIDA os dentistas
trabalhavam sem luvas e poucos esterilizavam os materiais de trabalho.
Agora não só esse procedimento é comum como é obrigatório por lei, por
ser fundamental para o Maat moderno. Quer isto dizer que o Estado se
encarregará de aumentar o seu poder para que a sua intromissão continue a
ser fundamental na vida dos cidadãos e, por cada lei justa, incorporará
no nosso quotidiano dez ou vinte com o simples propósito de alimentar e
perpetuar no poder a casta governante. Mas isso não significa que o
Estado não deva ter o poder de mandar isolar a população em casa, e
fechar toda e qualquer actividade económica pelo uso da força contra
ameaças extraordinárias contra a população que rege, fazendo uso de
todos os recursos possíveis. Afinal de contas foi isso que o Reino Unido
fez quando se viu só ante a ameaça Nazi no continente europeu. O
perigo, como bem advertiu Hayek, é a população pensar que, como o
governo foi exitoso na gestão económica do país em tempo de guerra, irá
continuar a sê-lo em tempos de paz, e o que não falta é gente por aí a
pedir já a total nacionalização da Saúde, mesmo antes de a ameaça ter
sido sequer contida. Em tempos de guerra só existe um objectivo e é
amplamente partilhado pela população: vencer. Em tempos de paz os
indivíduos têm fins diversos e devem ser livres de os perseguir. O
Estado é incapaz de gerir os recursos numa sociedade livre.
Os romanos nos tempos da República, em caso de ameaça grave,
entregavam todo o poder a um ditador, que depois voltava a entregar as
insígnias desse poder ao Senado. É famosa a lenda de Cincinato, que
depois de vencer a Batalha do Monte Álgido, aclamado pela população que o
queria nomear rei, foi lavrar os seus campos e apascentar os seus
rebanhos. Depois desta crise, eu também sou partidário de mandar os
governantes pastar, porque sei que eles vão aproveitar a ocasião. Mas
que o consigam só se deve à ignorância ou falta de memória dos cidadãos,
não à actuação do Estado para conter a epidemia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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