No Brasil, os crimes homofóbicos são como as salsichas: melhor não saber
como são fabricados. Texto de Flávio Gordon, publicado pela Gazeta do Povo:
“Os intelectuais são, no estrito senso que estamos vendo,
fundamentalmente inconsequentes às exigências do mundo externo.” (Thomas
Sowell, Os Intelectuais e a Sociedade)
Naquele fim de tarde, o estudante universitário Daniel Reynaldo
subiu, determinado, as escadarias do prédio do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, localizado no Largo de São Francisco de
Paula, centro do Rio de Janeiro. Seu objetivo era acompanhar a
apresentação dos resultados de uma pesquisa acadêmica intitulada Dossiê
sobre Lesbocídio no Brasil de 2014 a 2017, de autoria das pesquisadoras
Maria Clara Dias (professora do Departamento de Filosofia e coordenadora
do estudo), Milena Cristina Carneiro Peres e Suane Felippe Soares, e
desenvolvida no âmbito do Grupo de Pesquisa “Lesbocídio – As histórias
que ninguém conta”, iniciativa do Núcleo de Inclusão Social (NIS) e do
Nós: Dissidências Feministas, ambos vinculados àquela universidade.
Tendo tido conhecimento prévio do estudo, pretendia questionar as
autoras sobre o que lhe pareceram falhas metodológicas e conclusões
infundadas da pesquisa. Mas não tardaria a descobrir que, nos dias de
hoje, há coisas que não se deve perguntar dentro de uma universidade,
pois o que está em jogo ali é militância político-ideológica, não
ciência. O que se relata a seguir é baseado em entrevista por mim
realizada com Daniel (que já havia publicizado o ocorrido em seu blog e
página do Facebook), bem como nos áudios por ele gravados no dia do
incidente.
É o dia 7 de março de 2018. Numa sala tomada por ativistas de
extrema-esquerda – membros de variados “coletivos” entoando de quando em
quando seus gritos de guerra tribais –, e na qual uma atmosfera de
exacerbada comoção substitui o espírito acadêmico de debate racional e
crítica, as pesquisadoras apresentam resumidamente os objetivos e
resultados do dossiê. Após ouvir pacientemente a exposição, quando então
se abre inscrição para perguntas da plateia, Daniel faz estes dois
questionamentos, com toda a educação:
1. Para o ano de 2017, a pesquisa registrara 17 casos de suicídios de
lésbicas no Brasil. Naquele mesmo ano, houve aproximadamente 11 mil
suicídios em geral. Diante dessa proporção, não seria exagerado
qualificar como alarmante o número de suicídios de lésbicas?
2. Embora a pesquisa listasse vários casos explícitos de lesbocídio,
as informações veiculadas na imprensa sobre a maior parte deles não
davam prova de motivação lesbofóbica. As autoras poderiam explicar
melhor os critérios adotados para se chegar às conclusões?
Já na segunda pergunta, as vaias começam. Daniel passa a ser
violentamente hostilizado e ofendido. “Lesbofóbico! Asqueroso! Babaca!
Palhaço!” são algumas das ofensas (as mais leves) que sofre. Por várias
vezes, ordenam-lhe que cale a boca. A segurança do prédio é chamada com o
objetivo de expulsá-lo dali. Convicto de seu direito de estar naquele
espaço público, e ademais sendo aluno da universidade, ele se recusa a
sair, e tenta explicar a situação para os seguranças, sempre em meio a
ofensas. O evento prossegue em clima tenso. Ao fim, Daniel dirige-se à
saída e começa a ser empurrado pelas costas. Recebe chutes e safanões,
ainda que sem gravidade.
Eis que, em meio ao rebuliço que encerrava o evento, aparece um
personagem curioso, mas deveras típico na fauna acadêmica nacional.
Dirigindo-se rispidamente a Daniel, e não à turba hostil, o funcionário
da universidade começa a gritar com voz estridente e pastosa: “Sem
agressão! Sem agressão!” Junto aos seguranças, conduz o pária para fora
do recinto. “Vai embora, seu asqueroso” – grita uma mulher ao fundo.
“Vai, vai, vai por aqui” – o homem indica o caminho aos seguranças. Mais
uma vez, Daniel tenta argumentar com um deles. Transtornado, o
funcionário recém-chegado interrompe-o aos berros, com palavras de baixo
calão: “Olha só, o senhor cale a sua boca. Ninguém fala nada. Eu sou o
diretor desta porra, hein? Cale a sua boca! Cale a sua boca!”.
Daniel questiona: “O senhor é diretor do IFCS?” A resposta é a mesma:
“Cale a sua boca”. Daniel reage com ironia: “Desculpe, eu não sabia que
você era o diretor do IFCS”. “Desculpa é o caralho!” – torna o homem.
Insiste-se na pergunta, e o sujeito (que não era diretor do instituto
coisa alguma, mas apenas um diretor administrativo) responde: “Não tenho
obrigação de te responder isso não, parceiro. Não tenho obrigação de te
responder essa porra, não”.
Levado para uma sala e mantido em cárcere privado por cerca de meia
hora, Daniel tem o celular apreendido pela segurança. Ao perguntar se
poderia reaver o seu aparelho, recebe a resposta, sempre gritada, do
autoproclamado diretor: “Não pode pegar porra nenhuma! Não pode pegar
porra nenhuma aqui”. Depois de algum tempo, o sujeito dá voz de prisão a
Daniel, e o apresenta a policiais militares estacionados na porta do
instituto. Todos são levados para a delegacia para prestar
esclarecimentos. Ali, professores, alunos e funcionários da faculdade
(incluindo, segundo nosso entrevistado, a então diretora do IFCS) acusam
Daniel de agressão verbal, desacato e ameaça, tentando fazer com que
fosse preso em flagrante. As acusações são rejeitadas pela Polícia
Civil. O dia se encerra. Mas o imbróglio está só começando.
Daniel não fora desprevenido ao lançamento do dossiê. Como admite
numa de suas perguntas, já vinha analisando os dados da pesquisa por
algum tempo. Uma vez que as pesquisadoras haviam adotado como
metodologia o clipping de notícias sobre mortes de lésbicas na internet –
chegando ao número total de 126 entre os anos de 2014 e 2017 (número
esse que passou a ser tomado como verdade absoluta pela imprensa) –,
nosso entrevistado decidira procurar pelo nome das falecidas listadas, a
data e o local do ocorrido, de modo a verificar qual fora a causa da
morte noticiada na imprensa. O que descobriu foi que muitos casos
computados no dossiê como lesbocídio – definido pelas pesquisadoras como
“morte de lésbicas por motivo de lesbofobia ou ódio, repulsa e
discriminação contra a existência lésbica” – tinham, na verdade, causas
muito distintas. Seguem alguns exemplos.
Em 25 de dezembro de 2017, no município paulistano de Riolândia, a
jovem Vitória Graciano Ramos foi acidentalmente atropelada por um
parente ao escorregar do capô do carro em movimento no qual se sentara
depois de abrir uma porteira. Para as pesquisadoras da UFRJ, Vitória foi
vítima inequívoca de lesbocídio. Em 21 de setembro de 2017, na zona
norte de Manaus, a assaltante Fabíola Oliveira Menezes morreu em troca
de tiros com a polícia. Junto com dois comparsas também armados, havia
roubado um Corsa preto, utilizado na fuga. Para as pesquisadoras da
UFRJ, Fabíola foi vítima inequívoca de lesbocídio. Em 13 de julho de
2017, a cabeleireira e empresária Micaela Ferreira Avelino, 26 anos, foi
baleada e morta em assalto a banco ao lado de sua barbearia num
shopping da Grande Natal. Para as pesquisadoras da UFRJ, Micaela foi
vítima inequívoca de lesbocídio. Em 24 de setembro de 2015, em Prata
(MG), Talita Evelin Ribeiro Araújo, 21 anos, foi morta e incendiada pela
namorada Eliane Alves, 36 anos. Para as pesquisadoras da UFRJ, Talita
foi vítima inequívoca de lesbocídio. E assim sucessivamente…
Até que Daniel começasse a criticar a utilização dos dados da
pesquisa, as autoras mantinham uma lista das vítimas de lesbocídio em
três domínios virtuais, um blog no WordPress, uma página no Facebook, e
outra no Twitter. Foi dessa lista, aliás, que o nosso entrevistado
retirou os nomes das pretensas vítimas de lesbocídio citados no
parágrafo anterior, pesquisando por eles nos meios de comunicação. Assim
que começou a divulgar na internet as circunstâncias reais dessas
mortes, o conteúdo das páginas foi apagado, tornando inacessível a base
de dados utilizada para a conclusão de que, entre 2014 e 2017, houve no
Brasil 126 vítimas de lesbocídio – ou seja, lésbicas mortas por serem
lésbicas. Contudo, Daniel ainda teve tempo de tirar print de parte do
material contido na página no Twitter.
Depois do incidente no IFCS, e com base na Lei de Acesso à
Informação, Daniel decidiu requerer diretamente à UFRJ, e em seguida ao
MEC, a lista com os nomes e os links acessados para verificação das
circunstâncias das mortes. De início, a universidade nem sequer
respondeu. Depois, forçada a dar alguma resposta pela
Controladoria-Geral da União (CGU), sob pena de processo por improbidade
administrativa, saiu-se com explicações pouco convincentes.
Assinada pela coordenadora do dossiê, a professora Maria Clara Dias, a
primeira resposta foi negativa. Alegava-se que, por não ter recebido
recursos governamentais, a pesquisa não estava sujeita à referida lei.
Ocorre que a alegação contradizia o próprio documento oficial do estudo,
em que se agradecia à Faperj e à Capes por haverem financiado a
publicação do dossiê. Ademais, tendo utilizado recursos humanos e
materiais da UFRJ, uma autarquia federal, ficava claro que os dados que
fundamentaram a pesquisa eram de interesse público, sendo, portanto,
objeto da Lei de Transparência.
Derrubado esse primeiro argumento em prol do sigilo sobre a base de
dados, a UFRJ rejeitou um segundo recurso do requerente. Em resposta
assinada pelo reitor Roberto Leher (aquele mesmo, filiado ao PSol, em
cuja gestão o Museu Nacional extinguiu-se em chamas), recorria-se,
agora, para negar o acesso às informações solicitadas, sob o pretexto da
ética de pesquisa e da preservação da imagem das vítimas e de seus
parentes. A alegação também não ficava de pé, todavia. Segundo a
metodologia adotada pelas pesquisadoras, os dados levados em conta para a
conclusão do dossiê já eram públicos, tendo sido retirados de sites e
portais de notícias na internet.
Depois dessas negativas, a CGU terminou por conceder provimento
parcial do recurso, de modo que fossem disponibilizados ao requerente os
dados coletados no âmbito da pesquisa, mas apenas – essa era a ressalva
– “em relação a idade da vítima, cidade/estado/região onde o caso
ocorreu, a profissão da vítima, o método do assassinato, o vínculo com o
assassino, o sexo do assassino, o tipo de lésbica e a raça/etnia da
lésbica assassinada, bem como o número do processo judicial aos quais os
crimes se referem, vedando-se a identificação das vítimas e dos
assassinos”. O parecer não incluía a exigência de publicidade dos nomes
das 126 pessoas mortas e dos links das matérias acessadas pelas
pesquisadoras. Firme na convicção de obtê-los, contudo, Daniel entrou
com recurso de última instância junto à Comissão Mista de Reavaliação de
Informações (CMRI), mas, até o momento em que escrevo, o processo ainda
está em andamento.
O estranho comportamento das pesquisadoras (e, por extensão, da
própria universidade) em relação à divulgação dos dados não ficou só
nisso. Como, depois do incidente no IFCS, Daniel houvesse feito críticas
incisivas à pesquisa, acusando-a de “fraudulenta” e “mentirosa” –
acusações que, todavia, a divulgação da base de dados talvez pudesse
desmentir –, as autoras moveram-lhe uma ação de indenização por danos
morais. Dizendo-se vítimas de agressão, perseguição, bullying virtual,
assédio e terror psicológico, as autoras acusam o réu de atacar a
população LGBT, entreter ideias nazistas e incitar o ódio. Na ação,
exigiam em caráter liminar a remoção, suspensão e bloqueio integral das
páginas na internet em que Daniel criticava a pesquisa; a proibição, sob
pena de multa diária, de que o réu voltasse a tratar do caso; e, por
fim, uma indenização por danos morais no valor de 20 salários mínimos.
Por incrível que pareça, a Justiça do Rio de Janeiro acatou o pedido
das autoras – de início, até mesmo a suspensão das páginas
(posteriormente liberadas por nova decisão do Tribunal de Justiça) –,
condenando Daniel (que já recorreu) ao pagamento da indenização. Num dos
trechos da sentença condenatória, a juíza do TJ-RJ responsável pelo
caso argumenta: “Acrescente-se que o objeto da pesquisa das autoras é a
morte violenta de uma parcela da população LGBTI, ou seja, as lésbicas,
notoriamente discriminadas como minoria. O Brasil lidera ranking mundial
de mortes por homofobia, segundo dados amplamente divulgados na
imprensa. Diante de tal quadro, toda e qualquer forma de estímulo à
violência, seja física ou simbólica, contra a população LGBTI deve ser
combatida e sancionada, para se superar o comportamento estigmatizante e
excludente”.
Note-se que o raciocínio (para não falar do vocabulário) da juíza
aproxima-se perturbadoramente ao da militância LGBT(I?) mais inflamada,
como aquela que hostilizou Daniel dentro da universidade. Mais ainda:
como fundamento da sentença, a doutora dá de barato uma informação – a
de que o Brasil lidera ranking mundial de mortes por homofobia – que,
justamente, parece ser baseada em pesquisas metodologicamente
imprecisas, tal como a que aqui se discute.
É realmente alarmante a possibilidade de que magistrados (incluindo
aí os ministros ultraprogressistas do STF) possam estar proferindo
decisões judiciais com base em conclusões acadêmicas infundadas. O que
prova, por si só, a importância de se dar ampla publicidade à base de
dados de onde se extraem essas conclusões. Caso contrário, cria-se um
mecanismo nocivo de retroalimentação, uma caixa preta em que o mérito
jamais é discutido (afinal, no caso em litígio, as 126 mortes foram ou
não realmente motivadas por “lesbofobia”?), mas sempre pressuposto. Para
condenar Daniel, a juíza tomou como fato inquestionável justamente
aquilo que seria preciso debater de maneira transparente, mas que não
tem sido graças à confusão reinante entre ativismo político (e jurídico)
e pesquisa científica.
Fora da esfera judicial, a comunidade acadêmica agiu no caso como de
costume: corporativa e ideologicamente. Publicaram-se um sem-número de
manifestos coletivos de desagravo às autoras do dossiê e ataques
coordenados contra a reputação de Daniel (ver exemplo), julgado e
condenado pelo crime de exigir transparência, bem como rigor
metodológico, de pesquisadoras universitárias financiadas com verba
pública. Semanas após o incidente no IFCS, num paroxismo de
irresponsabilidade e inversão de valores, o colegiado do Departamento de
Filosofia – sob os protestos heroicos (mas inúteis) de um único
professor – decidiu conceder uma menção de louvor àquele funcionário
que, apresentando-se como “diretor desta porra” (leia-se, do instituto),
interpelou Daniel aos berros, mantendo-o, ademais, em cárcere privado
dentro da faculdade. Premiado por conduta imprópria a um funcionário
público, o sujeito decerto não hesitará em reexibir o seu desequilíbrio
numa nova oportunidade.
É, portanto, nesse ambiente de insanidade oficializada, do qual a
discussão sobre a realidade concreta foi banida por meio de gritos
histéricos e retórica sentimentalista, que a proposta de criminalização
da homofobia tem sido decidida no Brasil por ministros da suprema corte
que se portam como militantes, falam como militantes e se baseiam em
dados colhidos exclusivamente em pesquisas conduzidas por militantes.
Pesquisas que, como se viu no caso aqui relatado, jamais podem ser
questionadas, muito menos esmiuçadas, tendo como único fundamento
(sagrado e interdito) a palavra final do ativismo político. No Brasil,
os crimes homofóbicos são como as salsichas: melhor não saber como são
fabricados.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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