Perante o ditador Maduro, que empreendeu uma guerra contra o seu próprio
povo, gente simpática como Francisco Louçã ou Joana Mortágua é tomada
por um horror sagrado face... ao imperialismo americano, escreve o
professor Paulo Tunhas no Observador (qualquer semelhança dos Louçã e Mortágua com Gleisi e a ralé ideológica esquerdista do PT e PSOL não é mera coincidência):
Face ao ditador Maduro, que empreendeu uma guerra contra o seu
próprio povo, obrigando quase três milhões e meio de venezuelanos a
abandonarem o país nos últimos anos, gente simpática como Dilma
Rousseff, Gleisi Hoffmann, Francisco Louçã ou Joana Mortágua é tomada
por um horror sagrado face ao imperialismo americano. Trump arranjará
maneira, por um método qualquer, de pôr a mão na Venezuela e de impor um
seu fantoche, tendencialmente sanguinário. Nada de surpreendente, é
claro. Os velhos ódios, como os velhos amores, morrem dificilmente. Mas o
facto de não ser surpreendente, muito exactamente, convida a alguma
reflexão.
A facilidade em saltar para os hipotéticos males futuros,
desvalorizando alegremente os reais males presentes, é ajudada por duas
características salientes: a incapacidade de olhar os factos com um
mínimo de despreendimento relativamente a um quadro teórico geral no
qual cresceram e de que nunca se afastaram por um milímetro – e um
profundo desprezo pela plebe. Estas duas características encontram-se,
de resto, ligadas uma à outra.
Convém não esquecer que uma boa parte da esquerda (incluindo uma
grossa fatia do PS) vive no interior de um mito. O mito generosamente
garante sentido a tudo. Ou melhor, garante o sentido todo àquilo que
permite pensar e, simultaneamente, cria uma fronteira intransponível
entre o sentido e o sem-sentido, que pertence às trevas exteriores. O
que é que o mito, genericamente, diz? Diz que há uma direcção bem
determinada da história, na qual, sabendo-o ou não, caminhamos, e que
essa direcção conduz ao socialismo e ao comunismo. Quem segue nessa
direcção está no bom caminho, quem marcha em sentido contrário está no
caminho errado. Não ver isto é laborar no sem-sentido, que só pode
resultar de uma resistência voluntária ao sentido da história ou da pura
e simples ignorância.
Toda a gente está a par desta doutrina, que outrora recebeu
desenvolvimentos filosóficos apreciáveis, bem como elaborações de uma
rusticidade extraordinária. O que se tende a ignorar é a que ponto ela
continua a trabalhar os espíritos e a fornecer o mobiliário mental
fundamental de gente que aparenta alguma sofisticação intelectual. O
núcleo essencial do mito permanece intacto naquelas cabeças, aconteça o
que acontecer, e se, por um instante ou outro, a crença se torna menos
aparente, é para reaparecer logo a seguir, magicamente intacta e não
menos poderosa. Não há desmentidos de qualquer espécie, empíricos ou
teóricos, que a possam pôr em causa, como nada há que consiga tornar
mais porosa a fronteira entre sentido e sem-sentido. Isso manifesta-se
tanto nas mais gerais como nas mais ínfimas e ridículas questões. O mito
perdura, eternamente fechado em si mesmo.
Percebe-se assim que Joana Mortágua ou Francisco Louçã, em artigos
publicados no esquerda.net, não vejam o que qualquer pessoa que não viva
no interior do mito vê com toda a nitidez possível. Por exemplo, que o
regime “bolivariano” é um regime que, desde o primeiro momento (desde
Chávez), estava condenado a tornar-se numa ditadura e que Guaidó, valha
ele o que valer, representa efectivamente a voz possível de uma
sociedade humilhada e miserável, submetida à crueldade de uma casta
corrupta. Aí onde o ridículo e o grotesco anunciavam com razoável
antecipação o horror, nada viam. O ridículo e o grotesco escaparam-lhes
por inteiro, e tal colossal falta de sensibilidade diz muito daquelas
cabeças. Certamente que agora se distanciam parcialmente de Maduro, que
manifestamente não pode já encarnar o sentido da história. Maduro
tornou-se incómodo, de mau gosto. Mas essa sensibilidade de superfície –
que os distingue do PC, que tem a pele mais dura — não chega, é claro,
para olhar a realidade de frente e medir o real sofrimento das pessoas.
Cada milímetro de distância de Maduro é compensado com metros de repúdio
dos Estados Unidos, finalmente os únicos efectivos fautores da desgraça
dos venezualanos. Sempre foi assim. É um ritual que o mito ordena.
Mesmo assim… Como se pode ser tão imune à informação amplamente
disponível sobre a miséria venezuelana? Bom, a imunidade à informação
sobre o terror tem uma larga história e também aqui não se pode falar
propriamente de novidade. Mas, sobretudo, é preciso ter em conta que o
mito obriga a uma extraordinária selectividade no uso da compaixão. Se
as criaturas humanas não encaixarem bem no esquema que o mito oferece,
não gozarão sem dúvida da mesma piedade que merecem aquelas que nele
encaixam. Formam uma plebe indistinta que não comove. Não se anda longe
do desprezo.
É este desprezo, mais explícito ou mais implícito, que essencialmente
fere. É o desprezo a que o mito obriga em relação a tudo o que escapa
ao seu fechamento, a tudo o que não cabe no seu sentido. Aquela gente
que foge da Venezuela ou que por lá se deixa morrer, pura e simplesmente
não faz sentido. Joana Mortágua e Francisco Louçã preferem falar dos
Estados Unidos e dos sinistros planos do Império. Conhecendo um pouco
aquela maneira de pensar, faz todo o sentido: um sentido que tem uma
triste e longa história.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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