Jan Alyne mais tarde desculpou-se por ter errado o gênero de “chateado”. Tarde demais: a troca de uma letra marcou-a como inimiga da categoria-fetiche do progressismo identitário. Jerônimo Teixeira para a Crusoé:
O
caso é feio e é grave. Na forma como foi apresentado por alguns sites
de notícias, parecia apenas feio: professora da Universidade Federal da
Bahia (UFBA) é acusada de transfobia e racismo. Teríamos assim um
episódio delicado, mas isolado, e bastaria investigar os fatos e
responsabilizar quem porventura devesse ser responsabilizado para conter
o estrago.
Há,
no entanto, um modo alternativo de resumir a história – por tudo que li
a respeito, o modo correto: professora que teve a aula perturbada por
aluna trans sofre linchamento moral. Isso é não só feio, mas também
grave, muito grave. Longe de se resumir ao descontrole de uma aluna em
sala de aula, o episódio baiano nasce de uma cultura que perpassa vários
setores da sociedade – imprensa, meios artísticos, empresas, governo – e
se manifesta com especial violência e virulência na academia.
O
bom leitor já adivinha que falo do progressismo identitário, tema de
outros textos desta coluna. Em grande parte produto dos departamentos de
Ciências Humanas – daí sua baixa adesão entre o proletariado que a
esquerda tradicional tinha como esteio –, essa cultura vem corroendo um
valor fundamental das universidades: a liberdade de pensamento. Em The
Coddling of the American Mind, Jonathan Haidt, psicólogo, e Greg
Lukianoff, advogado e ativista da liberdade acadêmica, fizeram um painel
desalentador da censura e do patrulhamento ideológico que se implantou
nas universidades americanas – com a conivência covarde de professores e
reitores que abraçam os dogmas da militância estudantil. Se algum
pesquisador um dia escrever um livro similar sobre a universidade
brasileira, o choque entre Liz Reis e Jan Alyne Barbosa Prado merecerá
algumas páginas.
Há
uma gravação da aula em que se deu a discussão (ou, para ser mais
coloquial e mais preciso, em que se armou o barraco). Ouvi uma versão
editada desse áudio no site do jornal O Globo. Os fatos que emergem da
gritaria são claros. Professora da Faculdade de Comunicação da UFBA, Jan
Alyne já ministrava a disciplina de Produção e Circulação de Conteúdo e
Mídias Digitais há um mês quando a cantora lírica Liz Reis compareceu à
aula pela primeira vez, na terça-feira, dia 12. A recém-chegada quis
fazer intervenções na aula – insistia em falar no “ethos midiático” –,
mas a professora julgou que ela estava se afastando do tema: “Vamos
voltar, senão a gente vai para um hipertexto e não volta mais”, disse.
Liz continuou interrompendo a professora. A tensão já estava instalada
quando Jan Alyne disse que Liz parecia “chateado”, o que detonou uma
diatribe furiosa da aluna trans contra a professora que não a via como
mulher.
A
professora saiu para buscar um funcionário que a ajudasse a retirar a
aluna da sala, e Liz seguiu discursando, com apoio de alguns colegas.
Reivindicou o reconhecimento de seu “lugar” de “mulher periférica preta
travesti”. Não aceitou sair da sala quando Jan Alyne voltou acompanhado
do funcionário. Invocou até um inaudito direito de praticar a coprofagia
durante a aula. “Pela pedagogia, a senhora deveria estar acolhendo o
meu cocô”, disse à professora, pouco antes de ameaçá-la com um processo
por transfobia e racismo. A aula foi suspensa.
Feio, grave.
***
Jan
Alyne mais tarde desculpou-se por ter errado o gênero de “chateado”.
Tarde demais: a troca de uma letra marcou-a como inimiga da
categoria-fetiche do progressismo identitário.
Depois
do barraco, discursando em uma manifestação estudantil, Liz denunciou o
gênero masculino com que a professora a tratou – e uma voz no meio dos
manifestantes prontamente lançou a acusação: “transfóbica!”. Em tempos
mais remotos, teria gritado “bruxa!”.
Professor
da mesma faculdade onde Jan Alyne leciona, Wilson Gomes, raro
intelectual de esquerda que confronta a voragem censória do
identitarismo, comentou o episódio no Twitter (ou X). “O lugar mais
insalubre para se trabalhar hoje, por razões de envenenamento
ideológico, são as universidades”, afirmou. Segundo Gomes, até a “menor
reivindicação de hierarquia pedagógica” pode fazer com que o professor
seja acusado de “crime identitário”.
“Hierarquia
pedagógica” é uma expressão importante aqui. Quando o barraco já pegava
fogo em sua sala, Jan Alyne tentou inutilmente afirmar sua posição: “A
professora aqui sou eu”. E o professor é a autoridade em sala de aula. É
quem determina qual o momento de ouvir em respeitoso silêncio e qual o
momento de perguntar e discutir. Isso deveria ser óbvio. No entanto, a
autoridade do professor vem sendo desmoralizada tanto pela histeria
identitária da esquerda quanto pela truculência populista da direita.
Munidas de celulares, as duas bestas ideológicas vigiam e cerceiam a
autonomia do docente. A certa altura de seu descontrole verbal, Liz Reis
afirmou, em tom de desafio, que iria gravar a aula – tal como fazem os
bolsonaristas em sua guerrilha contra os mestres “doutrinadores”.
***
Professor
universitário de literatura, Coleman Silk, protagonista de A Marca
Humana, de Philip Roth, sela sua desgraça quando está fazendo a chamada.
Constatando que certos alunos jamais apareceram na aula, ele pergunta à
turma se esses ausentes seriam fantasmas – spooks, em inglês. Ocorre
que spook já foi um termo depreciativo para se referir a uma pessoa
negra. E os alunos a que ele se referiu como spooks – sem nunca tê-los
visto – eram negros. Um simples gracejo bastou para que Silk fosse tido
como racista, quando na verdade… Bem, melhor parar antes que eu dê um
spoiler.
Há
certa semelhança entre o drama de Silk e o barraco na UFBA. Mas recorro
à literatura de Roth por outra razão: em A Marca Humana, lançado em
2000, o escritor judeu americano cunhou a epígrafe para o século do
cancelamento, do lugar de fala, do privilégio branco e da ancestralidade
negra: o “êxtase da santimônia”. A expressão aparece logo no início, em
referência ao frenesi moralista que tomou os Estados Unidos em 1998,
quando se revelou o que o presidente fazia com a estagiária no Salão
Oval. Por bem menos do que Bill Clinton fez, Coleman Silk é perseguido
pelos santarrões acadêmicos.
A
voz que levantou o barraco na UFBA, a voz que exige atenção total para
seu ethos midiático, a voz que grita sobre todas as outras para reclamar
que não a ouvem por ser negra e pobre e travesti, a voz que ameaça e
que condena – esta é a voz da santimônia em êxtase.
Postado há 5 weeks ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário