MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 28 de outubro de 2023

No barraco universitário, a santimônia trans grita mais alto.



Jan Alyne mais tarde desculpou-se por ter errado o gênero de “chateado”. Tarde demais: a troca de uma letra marcou-a como inimiga da categoria-fetiche do progressismo identitário. Jerônimo Teixeira para a Crusoé:


O caso é feio e é grave. Na forma como foi apresentado por alguns sites de notícias, parecia apenas feio: professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) é acusada de transfobia e racismo. Teríamos assim um episódio delicado, mas isolado, e bastaria investigar os fatos e responsabilizar quem porventura devesse ser responsabilizado para conter o estrago.

Há, no entanto, um modo alternativo de resumir a história – por tudo que li a respeito, o modo correto: professora que teve a aula perturbada por aluna trans sofre linchamento moral. Isso é não só feio, mas também grave, muito grave. Longe de se resumir ao descontrole de uma aluna em sala de aula, o episódio baiano nasce de uma cultura que perpassa vários setores da sociedade – imprensa, meios artísticos, empresas, governo – e se manifesta com especial violência e virulência na academia.

O bom leitor já adivinha que falo do progressismo identitário, tema de outros textos desta coluna. Em grande parte produto dos departamentos de Ciências Humanas – daí sua baixa adesão entre o proletariado que a esquerda tradicional tinha como esteio –, essa cultura vem corroendo um valor fundamental das universidades: a liberdade de pensamento. Em The Coddling of the American Mind, Jonathan Haidt, psicólogo, e Greg Lukianoff, advogado e ativista da liberdade acadêmica, fizeram um painel desalentador da censura e do patrulhamento ideológico que se implantou nas universidades americanas – com a conivência covarde de professores e reitores que abraçam os dogmas da militância estudantil. Se algum pesquisador um dia escrever um livro similar sobre a universidade brasileira, o choque entre Liz Reis e Jan Alyne Barbosa Prado merecerá algumas páginas.

Há uma gravação da aula em que se deu a discussão (ou, para ser mais coloquial e mais preciso, em que se armou o barraco). Ouvi uma versão editada desse áudio no site do jornal O Globo. Os fatos que emergem da gritaria são claros. Professora da Faculdade de Comunicação da UFBA, Jan Alyne já ministrava a disciplina de Produção e Circulação de Conteúdo e Mídias Digitais há um mês quando a cantora lírica Liz Reis compareceu à aula pela primeira vez, na terça-feira, dia 12. A recém-chegada quis fazer intervenções na aula – insistia em falar no “ethos midiático” –, mas a professora julgou que ela estava se afastando do tema: “Vamos voltar, senão a gente vai para um hipertexto e não volta mais”, disse. Liz continuou interrompendo a professora. A tensão já estava instalada quando Jan Alyne disse que Liz parecia “chateado”, o que detonou uma diatribe furiosa da aluna trans contra a professora que não a via como mulher.

A professora saiu para buscar um funcionário que a ajudasse a retirar a aluna da sala, e Liz seguiu discursando, com apoio de alguns colegas. Reivindicou o reconhecimento de seu “lugar” de “mulher periférica preta travesti”. Não aceitou sair da sala quando Jan Alyne voltou acompanhado do funcionário. Invocou até um inaudito direito de praticar a coprofagia durante a aula. “Pela pedagogia, a senhora deveria estar acolhendo o meu cocô”, disse à professora, pouco antes de ameaçá-la com um processo por transfobia e racismo. A aula foi suspensa.

Feio, grave.

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Jan Alyne mais tarde desculpou-se por ter errado o gênero de “chateado”. Tarde demais: a troca de uma letra marcou-a como inimiga da categoria-fetiche do progressismo identitário.

Depois do barraco, discursando em uma manifestação estudantil, Liz denunciou o gênero masculino com que a professora a tratou – e uma voz no meio dos manifestantes prontamente lançou a acusação: “transfóbica!”. Em tempos mais remotos, teria gritado “bruxa!”.

Professor da mesma faculdade onde Jan Alyne leciona, Wilson Gomes, raro intelectual de esquerda que confronta a voragem censória do identitarismo, comentou o episódio no Twitter (ou X). “O lugar mais insalubre para se trabalhar hoje, por razões de envenenamento ideológico, são as universidades”, afirmou. Segundo Gomes, até a “menor reivindicação de hierarquia pedagógica” pode fazer com que o professor seja acusado de “crime identitário”.

“Hierarquia pedagógica” é uma expressão importante aqui. Quando o barraco já pegava fogo em sua sala, Jan Alyne tentou inutilmente afirmar sua posição: “A professora aqui sou eu”. E o professor é a autoridade em sala de aula. É quem determina qual o momento de ouvir em respeitoso silêncio e qual o momento de perguntar e discutir. Isso deveria ser óbvio. No entanto, a autoridade do professor vem sendo desmoralizada tanto pela histeria identitária da esquerda quanto pela truculência populista da direita. Munidas de celulares, as duas bestas ideológicas vigiam e cerceiam a autonomia do docente. A certa altura de seu descontrole verbal, Liz Reis afirmou, em tom de desafio, que iria gravar a aula – tal como fazem os bolsonaristas em sua guerrilha contra os mestres “doutrinadores”.

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Professor universitário de literatura, Coleman Silk, protagonista de A Marca Humana, de Philip Roth, sela sua desgraça quando está fazendo a chamada. Constatando que certos alunos jamais apareceram na aula, ele pergunta à turma se esses ausentes seriam fantasmas – spooks, em inglês. Ocorre que spook já foi um termo depreciativo para se referir a uma pessoa negra. E os alunos a que ele se referiu como spooks – sem nunca tê-los visto – eram negros. Um simples gracejo bastou para que Silk fosse tido como racista, quando na verdade… Bem, melhor parar antes que eu dê um spoiler.

Há certa semelhança entre o drama de Silk e o barraco na UFBA. Mas recorro à literatura de Roth por outra razão: em A Marca Humana, lançado em 2000, o escritor judeu americano cunhou a epígrafe para o século do cancelamento, do lugar de fala, do privilégio branco e da ancestralidade negra: o “êxtase da santimônia”. A expressão aparece logo no início, em referência ao frenesi moralista que tomou os Estados Unidos em 1998, quando se revelou o que o presidente fazia com a estagiária no Salão Oval. Por bem menos do que Bill Clinton fez, Coleman Silk é perseguido pelos santarrões acadêmicos.

A voz que levantou o barraco na UFBA, a voz que exige atenção total para seu ethos midiático, a voz que grita sobre todas as outras para reclamar que não a ouvem por ser negra e pobre e travesti, a voz que ameaça e que condena – esta é a voz da santimônia em êxtase.
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