BLOG ORLANDO TAMBOSI
Como o mais elegante dos franceses, aprendemos a beber e a gozar as coisas boas da vida – e demos-lhes 20 litros de avanço. Cada um. Alexandre Borges para o Observador:
Foi
notícia na véspera do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades.
Mas, entre Santos Populares e escapadinhas de férias, caricaturas e
dicas de jardinagem sobre ramos mortos, corre o risco de ter passado
despercebido: Portugal revalidou e aumentou a liderança enquanto maior
consumidor mundial de vinho.
Branco,
tinto, rosé – o que quiserem. Não é para todos. Nos dias que correm,
não somos propriamente líderes mundiais em muita coisa. Aliás,
geralmente, quando aparecemos no top 5 ou top 10 de um índice qualquer,
não é a propósito das performances mais notáveis: é países mais
envelhecidos, mais endividados, menor PIB per capita, mais descrentes
nas instituições e no futuro, etc. Agora, líderes mundiais no vinho?
Caramba. Que categoria.
Dizia
a notícia do Público, de acordo com o relatório da Organização
Internacional da Vinha e do Vinho, que cada português consumiu, em
média, 67,5 litros de vinho no ano passado. Mais 20,1 litros – oiçam
isto – mais 20,1 litros do que cada francês, os segundos classificados
(e aqui, eu sei que até aqueles que estavam a censurar em silêncio o
cronista por não sublinhar a gravidade da questão do alcoolismo,
sentiram um certo orgulho. Ah, e tal, os franceses, tanta conversa sobre
o vinho e as castas e os taninos e o terroir, e o Château isto, Château
aquilo, e vai-se a ver e pimba: tomem lá 20 litros de avanço que ainda
ganhamos por 0,1. É o Euro 2016 outra vez. De penalty, se for preciso).
A
grandeza dos números não se fica por aqui. É um aumento de 14,3% em
relação ao ano anterior e, ainda por cima, em contraciclo. Em 2022, o
mundo consumiu menos vinho, menos três milhões de hectolitros, para ser
mais preciso. As razões apontadas prendem-se com as restrições à Covid
que ainda vigoraram boa parte do ano, por exemplo, na China, ou com as
sanções e embargos resultantes da guerra na Ucrânia. O que é que nós,
portugueses, fizemos? Bebemos ainda mais, está claro. E não foi mais um
copo, foram mais 500 mil hectolitros. Estão a brincar com isto?
Pandemias, guerras, ameaças nucleares, e uma pessoa ainda devia dar em
abstémia, queres ver?
O
caso presta-se à graça fácil, mas diria que fala de uma coisa muito
séria: esta nossa antiquíssima sabedoria. Ela será descrente depois de
tantos séculos de desilusões, será melancólica e, quantas vezes,
solitária, nada fará por mudar o mundo, mas é efectivamente sábia e
feliz. Ninguém me tira da cabeça que o povo de brandos costumes
desmentido pelo comportamento no trânsito, nas caixas de comentários
dessa internet e tantas e tão trágicas vezes pelo seu comportamento
conjugal, só é brando e adormecido porque, apesar de tudo, come e bebe
bem e vive à beira-mar e há sol quase todo o ano. Os prazeres que outros
cada vez procuram e pagam para ter, o português tem-nos de graça ou
razoavelmente baratos, ainda.
Os
números confirmam-no: a maior subida no consumo ocorreu na restauração,
mais do que no retalho. Os turistas estão a vir a Portugal ajudar-nos a
ser ainda mais campeões do mundo. Vêm beber a Portugal – e pagam bem
por isso. Agora, dessem-nos a nós o clima e o peixe frito dos ingleses e
já nos tínhamos virado ao contrário; os governos não durariam mais de
um ano; as ameaças atiradas pelo vidro do carro, em acelerado andamento
para longe da situação, passariam a vias de facto.
Mas
como o mais elegante dos franceses, aprendemos a beber e a gozar as
coisas boas da vida – e demos-lhes 20 litros de avanço. Aos espanhóis,
27. Cada um. E querem-nos a falar da poda do Galamba e do falo de
Cutileiro que, afinal, a Câmara de Lisboa, vai deixar orgulhosamente
erecto à liberdade durante a visita do Papa, e dos cartazes que o
primeiro-ministro acha racistas, e que o cartoonista se faz de sonso e
diz que são fofinhos, e que alguma esquerda veio a correr ligar aos
“movimentos inorgânicos” e à “extrema-direita” e vai-se a ver e, afinal,
até foi feito por um senhor da CGTP? Deixem-nos com o nosso vinho, que,
no fim de contas, também é a nossa maneira de ser poetas e estar
sozinhos, como Fernando Pessoa, que também não bebia pouco e fez anos
anteontem.
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