BLOG ORLANDO TAMBOSI
Na epiderme, a defesa da liberdade. Um pouco abaixo, a tutela. Fernando Schüler para a revista Veja:
Na
incrível fábrica brasileira de explicações simples para problemas
complicados, escutamos de tudo. Há quem tenha culpado os jogos
eletrônicos pela violência nas escolas. De um ministro escutei que a
culpa era da “liberação das armas”, diante da monstruosidade feita com
uma machadinha, em Blumenau. Em um grupo de WhatsApp, alguém foi
taxativo: “A culpa é do Bolsonaro”. Imagino que em outros o culpado tenha sido o Lula.
E de uma outra autoridade li que aquilo teria algo a ver com o
“golpismo do 8 de Janeiro”. Na cacofonia brasileira, cada um vai
espalhando suas impressões. A favorita da vez é a de que as redes
sociais têm culpa no cartório. Seja pelo 8 de Janeiro, seja pela
violência, seja por tudo de ruim que anda por aí. E que, como é próprio
da tradição brasileira, precisamos de mais uma lei para “pôr ordem em
toda essa bagunça”.
É
sobre isso o debate em torno da Lei das Fake News. O Estado, como se
tornou comum por aqui, resolveu regular a discussão. E o fez à moda
brasileira: empresas de comunicação, com óbvios interesses no projeto,
podem fazer editoriais e emitir sua opinião favorável ao projeto.
Empresas com visão contrária, negativo. São intimadas a depor, a retirar
sua opinião, e se tornam “suspeitas” de uma penca de crimes. Não deixa
de ser didático. Nos ajuda a pensar um pouco sobre o que está em jogo.
Os
defensores da lei dizem que é preciso regular. É preciso mudar os
termos no Marco Civil da Internet, uma antiga lei da época em que se
imaginava a internet como um espaço aberto, e determinar que as
plataformas devem “atuar diligentemente” para “prevenir e mitigar” toda a
sorte de crimes, inclusive aqueles de natureza política, como os
“crimes contra as instituições democráticas”. Uma plataforma terá de
decidir o que entra ou não na conta de uma “grave ameaça” ao estado
democrático de direito. E, se não acertar, será responsabilizada. As
plataformas igualmente terão de monitorar as redes para identificar se
há alguma suspeita de crime atual ou que “possa ocorrer no futuro”. Se
não o fizer, e não comunicar às autoridades, também podem ser
responsabilizadas. Por fim, a lei dá amplos poderes ao Comitê Gestor da
Internet para fixar “diretrizes” para os códigos de conduta das redes, e
igualmente depois para “validar” a sua redação. O Comitê terá poderes
para “limitar a distribuição massiva de conteúdos e mídias”, pelas
empresas de mensagens, como o WhatsApp, e deve fazer uma “conferência
anual” para discutir todos esses assuntos. Este último item demonstra a
displicência com que fazemos leis no Brasil. Alguém poderia se perguntar
por que cargas-d’água o contribuinte brasileiro precisa pagar, ano após
ano, uma conferência anual para discutir qualquer coisa referente à
liberdade e à regulação da internet. Não há resposta. Apenas uma lei
feita no embalo do ativismo e da fúria reguladora que há alguns anos
tomou conta do país.
O
Comitê Gestor existe desde os anos 1990, sempre teve atribuições
essencialmente técnicas. Se aprovada a lei, a conversa será outra. Ele
passa a propor coisas como “diretrizes estratégicas para a liberdade na
internet”. Dirá, por exemplo, para quantas pessoas você e eu poderemos
mandar uma mensagem, no WhatsApp, e dirá o que as plataformas deverão
admitir ou banir. Não é pouca coisa. Podemos até fazer de conta que
vivemos todos em uma grande reunião de escoteiros e que não há problema
algum em delegar essas coisas a uma instância de poder qualquer. Quando
Madison e os fundadores dos Estados Unidos desenharam o Bill of Rights,
na Constituição americana, era exatamente para que uma coisa dessas não
acontecesse. Que o Congresso “não faria leis” restringindo um direito
que, na sua visão, pertencia às pessoas, aos cidadãos, e não ao Estado.
Isso não quer dizer que eles estavam certos. Eles apenas escolheram um
caminho, diferente do qual parecemos adentrar, no Brasil.
As
guerras culturais da democracia atual fizeram com que muita gente
trocasse a defesa da liberdade de expressão por outros tipos de
prioridade. O “combate às fake news” e aos “discursos de ódio” é exemplo
óbvio. Nada disso é novo, muito menos a pergunta xarope que vem logo
depois: quem teria o poder para definir essas coisas? Quem definirá o
que significa um “risco sistêmico ao estado democrático de direito”,
conforme se lê, insistentemente, no projeto? Alguém poderia dizer que
tudo isso é autoevidente. O PCO que o diga. Foi banido por “atacar” o
STF, ou coisa do tipo. Daria uma tese de doutorado analisar tudo que foi
incluído na conta de “ameaça ao estado de direito” no Brasil dos
últimos anos. Do famoso tuíte do professor Marcos Cintra “ponderando”
sobre as urnas eletrônicas a um dedo médio apontado para o edifício do
STF. O atual projeto criminaliza a divulgação de “fato que (alguém) sabe
inverídico” sobre o processo eleitoral. Ou um fato “passível de sanção
criminal”. É duro ter de perguntar, pela enésima vez, o que é exatamente
uma informação “verídica”? Dar uma opinião contrária ao sistema
eleitoral ainda será permitido? Alguém assumirá a possibilidade de cair
na malha do “risco sistêmico” ou da “grave ameaça”? As plataformas
assumirão o risco? Os cidadãos? Ou estamos (quase) todos alegres em
viver numa democracia pautada pelo medo? Suspeito que sim. E talvez seja
exatamente aí que resida o problema.
O
que estamos discutindo, na verdade, é uma lei vaga, com uma redação
displicente, que aprofunda um pouco mais nossa democracia de tutela. É
democracia dos tipos penais abertos, da censura prévia, dos banimentos
de jornalistas, das decisões “de ofício”, sem contraditório, sem devido
processo legal, essas coisas que sempre nos soam tão bem quando atingem o
“lado de lá” do jogo político. De uma legislação técnica e bem-feita,
que é o Marco Civil da Internet, arriscamos migrar para uma regulação
com forte componente político. No eterno pêndulo liberdade versus
segurança, parecemos fazer uma opção. O que esquecemos é que tanto a
liberdade como a segurança têm lá seus riscos. A liberdade traz o risco
de que inverdades sejam ditas; a segurança, o risco de que apenas certos
tipos de inverdade possam ser ditos. E não acho que precisamos ir longe
para saber disso, no Brasil atual. Alguém me definiu o projeto todo
como um cavalo de Troia. Nos preâmbulos, palavras amenas sobre a
“liberdade”. “Garantir a liberdade de expressão, a liberdade de
imprensa, o fomento à diversidade.” Logo adiante, quando a lei passa aos
comandos objetivos, a liberdade desaparece. Surgem aí o comitê, os
códigos, as remoções e punições. É a lógica de decisões recentes sobre a
censura, no Brasil de hoje. Na epiderme, a defesa da liberdade; um
pouco abaixo, a tutela. Não é bom caminho. Mas reconheço que ele é
perfeitamente adequado à nossa tradição. “Somos latinos, não
anglo-saxões”, como me disse uma irritada interlocutora, tempos atrás,
em um debate. Na hora, brinquei que não sabia se aquilo era uma crítica
ou elogio. Mas no fundo acho que todos sabemos.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840
Postado há 2 days ago por Orlando Tambosi
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