BLOG ORLANDO TAMBOSI
Estão aí com uma lei que pretende combater notícias falsas que talvez, assim, quem sabe, digamos, é pelo menos razoável supor que possa ser usada pra botar em cana quem fale mal de autoridade. Via Crusoé, a crônica de Orlando Tosetto:
Me
pergunto se o amigo, como eu, anda preocupado com sua Segurança
Expressiva. Sim, porque temos que falar da Segurança Expressiva. Assim
como já andamos falando da segurança alimentar, da segurança menstrual,
da segurança sanitária, cultural, indumentária, proteica, farmacológica,
psicológica, enfim, em seguranças de todos os tipos (inclusive os de
óculos espelhados, terno preto, ponto na orelha e Glock no bolso do
paletó).
Eu
confesso que ando inseguro quanto ao estado da minha Segurança
Expressiva. É que estão aí com uma lei que pretende combater notícias
falsas (em grego, fake news) que talvez, assim, quem sabe, digamos, é
pelo menos razoável supor que possivelmente possa ser usada pra botar em
cana quem fale mal de autoridade. Ou gente que fale mal de coisas que
as autoridades e seus amigos achem que se deva falar bem. Ou gente que
fale bem de coisas que as autoridades e seus colegas achem que se deva
falar mal. Ou gente que fale verdades que as autoridades e seus amigos,
por esses lapsos tão frequentes e inocentes que as acometem, achem que
são mentiras. Enfim, gente que fale qualquer coisa.
O
perigo aumenta se as autoridades em questão forem da atual Situação, ou
deem suporte à Situação, ou se derramem de amores pela Situação, ou
sejam muito fãzocas da Situação, ou correspondam com mimos e atenções
aos mimos e atenções que recebem da Situação.
É
verdade que eu – eu, que sempre que vejo a Situação passando na rua já
me deito e civilmente me ofereço como tapete para que ela não suje os
pés – tenho pouco a temer, dada a minha coragem de servir, o meu
indomável pendor de me calar, e o meu destemor em falar tudo o que me
mandam dizer. Mas pouco a temer é sempre algo a temer, confere? Posso
temer um dia, ou pior, uma noite ruim em casa de alguma autoridade, não
é? Posso temer uma leitura apressada de algum assessor de alguma
autoridade, não é? Posso temer que o adjetivo “estupendo” aplicado a tal
ou qual ministro seja mal interpretado, não é? Ou que o adjetivo
“assombroso” leve uma sombra ao coração de não sei que juiz, não é? E
com essas e outras eu, ora, eu, tímido que sou, acabo me sentido meio
inseguro, sabe como é?
Porque
a lei vem, e vem fervendo, apesar de estarmos mornos e arrefecendo. Ou
antes: a lei vem, mas talvez demore um pouquinho. É que, enquanto
digito, ouço dizer que as pessoas que propuseram a lei, e que disseram
que ela precisava ser votada urgentemente, bem, essas pessoas se
esqueceram de ler o texto todo da lei, de sorte que a urgência ficou
adiada para data futura, pós-leitura. Ganhamos aí algum tempo para
ajudar nossa tibieza a preparar estratégias. Algum tempo, não muito.
Porque também tem isto: os caras disseram que (depois de ler, né?) só
vão votar a lei quando souberem que é pra ganhar. O que pode ser daqui a
dois minutos ou duzentos anos. E mais ainda: se enrolarem muito, aí
ninguém vota mais nada e a lei vem, com outro nome, por outra via e
outras mãos – mas, quanto a isso, é melhor a gente antecipar a vigência
da coisa e não dar um pio.
Felizmente
o Brasil tem na sua história exemplos que nos ajudam a agir (ou a não
agir; o amigo escolhe) quando a lei vier. No período fértil de
artimanhas retóricas que foi de 1964 a 1985, vários jornalistas,
escritores, dramaturgos, músicos populares e políticos foram forçados,
que digo?, persuadidos a reformular, refrasear suas expressões, a fim de
torná-las seguras e, até onde desse, expressivas. Eles nos legaram seus
exemplos, suas táticas, suas saídas pela tangente.
Um
receituário que a gente pode seguir, por exemplo, é o do Ivan Lessa,
que viveu aqueles tempos e foi craque na coisa. A receita número um, do
ano leve que foi 1970, diz: “Atenção, brasileiros, o momento exige
extrema precaução e um mínimo de sensatez!!”. Quando vier a lei sejamos,
pois, extremamente precavidos e minimamente sensatos. E a número dois,
dada algum tempo depois, diz: “A única vantagem da cens, digo, da lei
contra as fake news é obrigar o cidadão a exercer as disciplinas das
entrelinhas, das alegorias, das insinuações”. Quando vier a lei sejamos,
pois, disciplinados, entre (ou só) alinhados, alegóricos, insinuantes.
Ou sejamos calados como as corujas, que falar, não falam, mas prestam
uma atenção…
Postado há 2 days ago por Orlando Tambosi
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