BLOG ORLANDO TAMBOSI
Obras artísticas e comerciais e até bonecas sexuais mostram que existe um movimento coletivo para banalizar um crime que a internet propagou. Vilma Gryzinski:
Os
meios intelectuais e artísticos franceses passaram os últimos dias
discutindo uma questão que parece descolada da realidade: se Bastien
Vivès, um autor de histórias em quadrinhos com vários conteúdos
similares à pornografia infantil, deveria ou não participar de uma
exposição no Festival de Angoulême.
O
semanário Charlie Hebdo defendeu o desenhista, perguntando: “Um
desenho, ou seja, traços feitos a lápis, representando cenas
imaginárias, tem o mesmo peso que uma foto representando atos sexuais
ilegais?”.
“Podemos
prever que a justiça confirmará o fato de que uma obra de ficção se
beneficia de uma liberdade que a autoriza a mostrar atos como os filmes
sobre incesto, os romances pornográficos ou acusados de promover
violências sexuais, como os escritos do Marquês de Sade”.
É
uma argumentação importante, porém falsa. A questão não envolve
liberdade artística ou de expressão, mas um crime previsto pelo código
penal francês nos seguintes termos: “A difusão, o registro ou a
transmissão da imagem ou da representação de um menor quando esta imagem
ou esta representação se reveste de um caráter pornográfico são punidos
com cinco anos de reclusão e multa de 75 mil euros”.
O festival não precisou se decidir sobre a essência da questão e cancelou a participação do autor alegando ameaças de morte.
O
próprio Vivès, um homem de 38 anos de aparência juvenil, com cabelos
longos e óculos de aro fino, pediu desculpas pelas redes. “Meus livros
não devem ser lidos sob o prisma da complacência com crimes” como a
pedofilia, o incesto e outros abusos. Ele também se desculpou por posts –
desencavados depois que o caso do festival se transformou em debate –
pregando atos de violência sexual contra uma autora de histórias em
quadrinhos com a qual havia entrado em choque.
Em
outro post do passado, ele dizia que se sentia “atraído por meninas de
10, 12 anos”. Numa de suas obras mais conhecidas, intitulada Poline, ele
mostra muitas meninas nessa faixa, fazendo poses de balé só de
calcinha. Na capa, um professor enorme e barbudo corrige com as mãos a
postura de uma bailarina de corpinho miúdo.
Outro livro, Petit Paul, tem como personagem principal um menino de 10 anos dotado de um pênis descomunal.
Os
livros, que existem há anos, só foram notados agora? Claro que não. O
que mudou foram os padrões de tolerância em decorrência de uma espécie
de conscientização sobre o abuso de menores e relações incestuosas de
adultos com adolescentes, incluindo vários casos envolvendo figuras
conhecidas no mundo político francês.
A
internet trouxe muito desse mundo obscuro à tona, expondo quantidades
devastadoras de adultos que se comprazem com pornografia ou atos físicos
de abuso infantil.
Ao
mesmo tempo, existem, de fato, vários movimentos para normalizar a
pedofilia, até na mudança de tratamento de seus adeptos, que passariam a
ser chamados de “adultos atraídos por menores”. Alguns alegam que
relações “consentidas” entre menores e adultos não são criminosas.
Essa
normalização foi denunciada recentemente depois que uma grife famosa de
moda, a Balenciaga, divulgou pelas redes uma campanha de publicidade
mostrando meninas pequenas com uma bolsa em formato de ursinho de
pelúcia usando acessórios típicos de praticantes do sadomasoquismo.
A
exploração em massa de menores muitas vezes é desmoralizada por teorias
conspiratórias absurdas. Entre as mais correntes, existem as que
atribuem a Donald Trump (ou Vladimir Putin, acreditem) o papel de
salvador das crianças abusadas por uma rede de traficantes formada por
figuras importantes.
Mas
a realidade é que houve casos revoltantes, como o da exploração em
massa de meninas da cidade inglesa de Rotherdam. Atraídas pela oferta de
drogas ou seduzidas por um “namorado” que as presenteava, meninas a
partir dos treze anos eram transformadas em escravas sexuais e abusadas
por dezenas de homens, durante anos. A polícia, por cumplicidade ou
receio de ser chamada de racista, dizia às famílias que não podia fazer
nada e que as meninas estavam com os abusadores, na ampla maioria
paquistaneses, por vontade própria.
Um pai que foi resgatar sua filha de uma dessas casas chegou a ser preso. Demorou anos para que as autoridades se mobilizassem.
As
discussões éticas, morais e culturais envolvendo um tema tão chocante,
são, obviamente, complexas. No Japão, com sua influência tão grande
sobre as histórias em quadrinhos, os mangás estão repletos de meninas
pré-púberes ou adolescentes em poses sensuais. Outros mostram
relacionamentos entre meninos.
Um
dos países mais liberais do mundo, a Noruega, proibiu as bonecas
sexuais em formato de crianças. Segundo a decisão do Supremo Tribunal
norueguês, é “fora de qualquer dúvida” que a lei sobre delitos sexuais
contra menores abrange textos, imagens, filmes e representações
tridimensionais. Nesse caso, as bonecas, que “contribuem para
trivializar a sexualização infantil”.
Há
quem defenda posição exatamente oposta: pedófilos, ou “adultos atraídos
por menores”, poderiam descarregar nas bonecas atos que seriam
cometidos contra crianças de verdade.
É
possível defender as crianças sem transgredir os direitos à livre
expressão nem se transformar, na definição do Charlie Hebdo, em
“moralistas autoproclamados que acusam e ameaçam”?
Não só é possível como é necessário. Viver em sociedades livres implica em debates complicados e desconfortáveis.
“Meus
desenhos de inscrevem num gênero burlesco humorístico. Às vezes usei
esse tom provocador, de maneira canhestra, em minhas entrevistas. Em
nenhum momento quis ferir as vítimas de crimes e abusos sexuais”,
escreveu Vivès.
E
acrescentou, usando a famosa conjunção condicional que destrói as
falsas desculpas: “Se minhas intenções puderam magoar essas pessoas,
apresento minhas mais sinceras desculpas”.
Claro
que tem um advogado no meio desse texto. E claro que o desenhista,
depois de passar anos sendo badalado como um gênio dos quadrinhos, não
esperava que se tornasse alvo de denúncias apresentadas por grupos de
proteção à infância. Fica o aviso.
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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